FRANCO BASAGLIA E A PSIQUIATRIA DEMOCRÁTICA
Introdução
Por estarmos lidando com tema tão polêmico e radical, optamos
por citar diversas vezes os autores em questão, tentando das voz a eles na divulgação de suas idéias.
Devido ao fato de o grupo já ter escrito o trabalho sobre antipsiquiatria (Laing, Cooper e Szazs, respeitando Basaglia que nega tal rótulo se considerando da Psiquiatria Democrática) antes da divisão de autores por grupos, utilizamos de tal texto como uma introdução assunto da antipsiquiatria.
A obra teórica de Franco Basaglia é bem vasta, resumi-la e analisá-la não resultaria em um texto pequeno, portanto pedimos a compreensão se nalgum momento fomos sintéticos demais ou se pulamos algum aspecto por nós considerado de menor importância.
A ANTIPSIQUIATRIA[1]
“Qualquer classificação de alguém sem seu consentimento é uma violação de sua integridade.”
J. P. Sartre[2]
A antipsiquiatria , uma feérica crítica a psiquiatria enquanto tal surgiu no seio da psiquiatria a partir da década de sessenta deste século, tendo como nomes de destaque: Ronald David Laing (1927 a 1889), David Cooper (1931 a 1986) e Thomas Stephen Szasz (1920 a ____).
Podemos destacar a negação que este movimento (a antipsiquiatria) faz da psiquiatria em frases como esta: “Acima de tudo, preocupei-me com a questão da violência na psiquiatria e concluí que, tal vez, a mais chocante forma de violência em psiquiatria é nada menos do que a violência da psiquiatria...” proferida pôr Cooper[3].
Mas porque tamanha desfeita para com uma profissão supostamente honrada na nossa sociedade que publica livros, vende remédios, mantém nosocômios?
Para tal resposta, nos detivemos num olhar sobre a psiquiatria, um olhar histórico para compreender como ela se formou.
Com o Renascimento Comercial do fim da Idade Média (séculos XIV e XV) surgiu uma nova classe social , a burguesia. Com a Revolução Industrial (séc. XVIII) esta classe atingiu a proeminência econômica, e com a Revolução Francesa (1789 a 1799) e as Revoluções Liberais do século seguinte (1830 a 1848) lançaram as bases para a sua supremacia política enquanto classe hegemônica.
A vigência do modo de vida burguês para toda a sociedade impôs a primazia do lucro como sendo a meta básica e única de toda atividade humana, e a sujeição do homem aos ditames do capital, coisas até então inéditas nas sociedades humanas.
A existência de pessoas que não se inseriam no sistema produtivo, não dão lucro irá atrapalhar o processo de acumulação capitalista. Retira-los do meio social se torna assim imperativo.
Logo os pobres serão segregados longe da sociedade.
A exemplo dessa ação temos, como bem lembra o Professor Frayze, a fundação em Paris (1656, ou seja ainda antes da “Era das Revoluções”) do “Hospital Geral, isto é, uma instituição que engloba diversos estabelecimentos sob uma administração única e destinada a recolher todos os pobres da cidade.”[4] A partir de então todas as demais cidades francesas possuirão esse famigerado Hospital Geral.
Assim, a pobreza é uma mal a ser sanado, o pobre não se encaixa na normalidade burguesa, ele é anormal, não segue a razão (do lucro) é um ente sem razão. Dessa visão da pobreza para a construção do conceito de loucura, foi um “pulinho”.
Em suma, “a loucura é percebida no campo formado pela própria miséria, pela incapacidade para o trabalho e pela impossibilidade de integrar-se no grupo” (burguês)[5].
Assim o pobre/louco deve ser tratado/punido para se encaixar e pôr não se encaixar na ordem burguesa.
A punição emergia do discurso moral que afirmava ser o bom o trabalho, a produtividade, já o louco pôr não se dedicar a estes seria portador do mal, portanto passível de punição.
Mas qual o médico a cuidar desses improdutivos? Roy Porter lembra muito bem quando afirma: “...o aparecimento da medicina psicológica foi mais conseqüência do que causa do surgimento do asilo de loucos. A psiquiatria foi capaz de florescer depois - mas não antes - de grande número de internos encher os manicômios.”[6] A psiquiatria surgia assim para trancafiar os loucos, ser o carcereiro do sistema político, social e econômico.
A partir dessa origem confinatória e punitiva, indubitavelmente que a psiquiatria iria se “modernizar”:
n Benjamin Rush (1746/1813) nos Estados Unidos inventa (1812) a cadeira giratória (Tranquilizer e Gyrator);
n A alternância de banhos quentes e frios (banhos forçados);
n Manfred Sakel (1900/1957) implementou os choques insulínicos (1934);
n Von Meduna (1896/1964) elaborou a convulsoterapia com o uso da cânfora, o cardizol ou metrazol para levar o paciente a ataques epilépticos artificiais;
n Tecnologia de contenção: camisa-de-força, amarras especiais, camas com cinturões, camas chumbadas, quartos fortes, e etc...
n Cerletti (1877/1963) e Bini (1908/1966), em Roma (1938), pesquisando com porcos descobriram a dosagem de eletricidade capaz de gerar uma convulsão no cérebro humano sem mata-lo, criando assim o eletrochoque convulsivante;
n Egas Moniz (1874/1955), português, na década de trinta (1935) desenvolveu a lobotomia (leucotomia frontal), o que lhe valeu o Prêmio Nóbel de Fisiologia e Medicina (1949);
n Psicofármacos para sedar os internos.
A lógica inerente a esses “avanços” transparece na medida em que a psiquiatria não consegue reintegrar os loucos a sociedade restando somente a ação confinatória. Para confiná-lo, quanto mais dócil ele permanecer melhor, portanto seda-lo, dopa-lo, ou lobotomiza-lo o pacifica (tornando-o um vegetal) e assim incomoda menos no hospício.
Ao denunciar e criticar essa prática desumana chamada psiquiatria pôr parte de próprios psiquiatras, surge a antipsiquiatria.
Em seu cerne ela vai se contrapor a psiquiatria, inicialmente colocando a questão da origem do sofrimento psíquico no âmbito social.
Ou seja se existe alguma entidade denominada loucura ela não esta organicamente no indivíduo como quer a psiquiatria e nem em anomalias do desenvolvimento infantil do indivíduo como o quer a psicanálise, mas ela esta no seio da sociedade que gerou essas pessoas (ditas loucas) logo, segundo a antipsiquiatria, é a sociedade que é louca.
O radicalismo (análise até a raiz do problema) da antipsiquiatria não poupa nem a psicanálise, pois quando esta perde o viés social comete ignomínias tais como afirmar que a origem da violência dos meninos de rua esta na carência de afeto paternal.
Mas voltando a sociedade, segundo a antipsiquiatria é ela a fonte do sofrimento psíquico.
A sociedade que conhecemos é a brasileira, vejamos um dado dela.
Metade da população brasileira recebe apenas doze porcento da renda nacional. Será que existem escolas, empregos, casas e sistema de saúde para essa metade da população?
Ou será que ficarão a margem da sociedade sem uma vida plena, levando vidas vazias, pois não são aceitos pela sociedade (capitalista) que valoriza aquilo que eles não tem (capital).
Avançando em outros aspectos a demonstrar a demência de nossa sociedade, iniciemos pôr Frayze:
n “A impessoalidade de nossas relações humanas;
n A indiferença afetiva e o isolamento aos quais o indivíduo esta sujeito em nossas sociedades industriais;
n A vida sexual destituída de afetividade e reduzida ao coito;
n A fragmentação da coerência de nossa conduta cotidiana devida ao fato de pertencermos e atuarmos em diversos grupos que nos impõem papéis contraditórios;
n A perda de sentimento de engajamento no mundo social;”[7]
n Desenraizamento do ser humano causado pelo êxodo rural;
n “A característica do momento é que o espírito medíocre, sabendo-se medíocre, tem a ousadia de afirmar os direitos da mediocridade e de impô-los pôr toda a parte;”[8]
n Nossa sociedade prega a fraternidade mas desde a escola impõem a rivalidade e a competividade;
n Estimula necessidade pelos meio de comunicação sem dar condições de satisfaze-la;
n e etc...
Notadamente, segundo a antipsiquiatria, nossa sociedade é insana, ou, na melhor das situações, possui muitas características insanas.
Mas qual será a instituição social que reproduz tal insanidade?
Qual é a instituição que reproduz, tão bem, para cada indivíduo o machismo, o racismo, e demais preconceitos? A família.
Afinal de contas se a sociedade é insana, sua célula básica também o será, e enquanto célula básica compete a ela, a família, reproduzir, pessoa a pessoa tal sociedade.
Podemos nos lembrar da seguinte questão, já muito citada, mas que coloca a análise na esfera da família: “A comunicação entre os membros de uma família é patológica porque um deles é psicótico, ou um deles é psicótico porque a comunicação é patológica?”[9]
Da família louca como que chegamos ao indivíduo louco, qual a gênese de tal situação para o indivíduo?
“Laing considera que as pessoas chamadas de esquizofrênicas ou loucas foram levadas, pelo tipo de relacionamento de sua família, a criar um “eu” falso. Este “eu” falso foi a maneira encontrada pela pessoa para tentar ser aprovada pelos outros. Assim, o “eu” da pessoa não chegou a se desenvolver. Foi reprimido. A psicose seria, para Laing e para Cooper, uma estratégia especial que a pessoa é obrigada a usar, para poder suportar uma situação muito pesada.”
“A crise de loucura, o dito “surto” esquizofrênico, é visto como uma viagem para o interior de si mesmo, onde a pessoa busca um refúgio. É um tentativa de retroceder no tempo e nas emoções, usada quando não há mais maneiras de suportar o mundo. O surto esquizofrênico é, então, a busca de uma vida diferente quando não há condições de manter os difíceis relacionamentos sociais a que a pessoa acostumou-se. Estes relacionamentos são tão difíceis para estas pessoas porque não se fazem com um “eu” autêntico, mas com um “eu” falso. A crise psicótica é uma tentativa de romper com uma vida que já esta, há muito, insuportável.”[10]
Já salientada a visão da loucura pela antipsiquiatria, vamos ver sua ação, as práticas asilares estruturadas conforme a psiquiatria são relegadas como ampliadoras, se não geradoras da loucura num processo iatrogênico.
Ficar circunscrito a normas rígidas da instituição que não possuem significado algum para o paciente o esvazia de sua dimensão humana.
A antipsiquiatria vai tentar desenvolver uma prática manicomial que respeite o ser humano.
Cooper vai dirigir na década de sessenta (1961 a 1965) no Shelly Hospital de Londres , o Pavilhão 21, reunindo doentes, enfermeiros e médicos em uma existência coletiva da qual todo vestígio de hierarquização desaparecera.
Cooper com Laing fundaram (1965) a Philadelphia Association, instituição antipsiquiátrica destinada a oferecer aos psicóticos lugares de acolhimento, onde pudessem ser acompanhados em seu esforço para reconstituir o seu “eu” autêntico.
O mais célebre desses “lares” foi o Kingsley Hall, centro histórico do movimento operário inglês, devido a carência de fundos, fechou (1970).
[1] Texto escrito anteriormente a divisão dos grupos pôr autor, que valerá enquanto introdução de questionamentos à psiquiatria da antipsiquiatria anglo-americana.
[2]In Szasz, Thomas. Ideologia e Doença Mental, pg. 201.
[3]Cooper, D. Psiquiatria e Antipsiquiatria, pg. 13.
[4] Frayze-Pereira, J. O Que é Loucura, pg. 63.
[5] Idem, pg. 67/68.
[6] Porter, Roy. Uma História Social da Loucura, pg. 27.
[7]Frayze-Pereira, ibidem pr. 31 e 32.
[8] Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas. New York, Norton, 1957, pg.15/16, citado in Friedenberg, Edgar. As Idéias de Laing, pg. 94.
[9] Beauchesne, Hervé. História da Psicopatologia, pg. 140.
[10] Serrano, Alan Indio. O Que é Psiquiatria Alternativa, pg. 71.