segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A experiência religiosa e a meditação





(Do livro, ainda não editado em nosso idioma, "O Despertar da Inteligência").
1

Dissemos que íamos falar sobre um problema sobremodo complexo, ou seja: Existe experiência religiosa, e que significa "meditação"? Observando, podemos ver que, em todo o mundo, o homem sempre andou buscando uma coisa existente além da morte, além dos seus problemas, uma coisa duradoura, verdadeira, eterna. Deu-lhe o nome de "Deus", e outros mais; e a maioria acredita em tal coisa, sem jamais tê-la experimentado. Prometem algumas religiões que se crermos em certos rituais, dogmas e salvadores, e se vivermos de um dado modo, encontraremos essa coisa maravilhosa, que podemos denominar como quisermos. Os que a têm "experimentado" diretamente fazem-no segundo o seu condicionamento, sua crença, as influências ambientes e culturais a que estão submetidos.

A religião, evidentemente, perdeu o seu significado, pois sempre houve guerras religiosas. Ela não resolve os nossos problemas. As religiões separaram os povos. Poderão ter exercido determinada influência civilizadora, mas não transformaram radicalmente o homem. Para começarmos a investigar se existe a "experiência religiosa", e o que tal experiência representa, e o porquê de a chamarmos "religiosa", evidentemente, em primeiro lugar, se faz mister muita sinceridade. Isso não significa ser sincero em obediência a algum princípio ou crença, ou em relação a algum “compromisso”, mas, sim, ver as coisas tais quais são, sem deformá-las, não só as coisas exteriores, senão também as interiores; significa jamais iludir a si próprio. Porque é facílimo nos iludirmos ao ansiarmos por uma dada experiência, religiosa ou de outra natureza - pelo uso de drogas, etc. Estamos, então, sujeitos a nos enredarmos em alguma espécie de ilusão.

Cabe-nos descobrir diretamente o que é "experiência religiosa". Precisamos imbuir-nos de humildade e sinceridade, a fim de não exigirmos para nós algum proveito ou ganho. Devemos, pois, atentar em nossos próprios desejos, apegos e temores, para os compreendermos a fundo, e não deixarmos a mente deformar-se de nenhuma maneira, impedindo assim toda e qualquer ilusão. E, igualmente, cumpre indagar: Que significa "experimentar"?

Não sei se já consideraram esta questão. Em regra, cansamo-nos das habituais experiências cotidianas. De todas elas estamos fartos, e quanto mais "sofisticada" ou intelectual a pessoa, tanto mais deseja viver só no agora - o que quer que isso signifique - e inventar uma filosofia do presente. A palavra "experiência" exprime passar por um certo estado, do começo ao fim, e dá-lo por acabado. Mas, infelizmente, para a maioria toda experiência deixa uma cicatriz, uma lembrança, agradável ou desagradável, e nós desejamos conservar as aprazíveis. Se ansiamos por qualquer espécie de experiência, espiritual, religiosa ou transcendental, devemos primeiramente descobrir se existe tal experiência, e também o que ela expressa. Se você passou por alguma e não é capaz de reconhecê-la, ela deixa de existir. Um dos elementos essenciais da experiência é o reconhecimento. E, havendo reconhecimento, aquilo que se experimenta já é conhecido, já foi sentido, pois, do contrário, não seria reconhecido.

Assim, ao falar de experiência religiosa, espiritual ou transcendental, a pessoa deve tê-la conhecido antes, para ser capaz de reconhecer que está experimentando algo diferente de uma experiência comum. Parece lógico e verdadeiro que a mente deve ser capaz de reconhecer a experiência, e o reconhecimento implica que a coisa já é conhecida e, por conseguinte, não é nova.

Ao desejarmos experiências no terreno religioso, nós as desejamos porque não resolvemos os nossos problemas, nossas ânsias, desesperos, temores e tristezas de cada dia; por essa razão pretendemos algo "mais". Nessa pretensão de “mais” encontra-se a ilusão. Isso é bem lógico e verdadeiro, penso eu. Não digo que a lógica seja sempre verdadeira, mas, quando, sã e equilibradamente, nos servimos da lógica e da razão, conhecemos as limitações da razão. O desejo de experiências mais amplas, profundas e fundamentais leva-nos a alongar ainda mais o caminho do conhecido. Isso me parece claro, e espero estejamos em comunhão, em "participação" uns com os outros.

Outrossim, investigando o terreno religioso, queremos descobrir o que é a verdade, se existe uma realidade, se existe um estado mental fora do tempo. A procura implica também uma entidade que busca. E que está buscando essa entidade? Como saberá que o que descobre, em sua busca, é verdadeiro? E, ainda, se ela encontra o verdadeiro - pelo menos o que pensa ser o verdadeiro - o que ela encontra depende de seu condicionamento, de seus conhecimentos, de suas anteriores experiências; a busca torna-se, então, apenas mais uma projeção de suas passadas esperanças, temores e anseios.

A mente que está investigando - não, buscando - deve achar-se totalmente livre destas duas coisas: o desejo de experiência e a busca da verdade. Isso porque, se estamos buscando, procuramos diferentes instrutores, lemos livros vários, aderimos a vários cultos, seguimos diversos gurus, etc, etc. - como quem percorre as vitrines das lojas. Essa busca não tem nenhum significado.

Assim, ao investigarem esta questão - "Que é mente religiosa, e qual a natureza da mente que já não tem experiência alguma" - vocês devem saber se a mente pode libertar-se do desejo de experiência e pôr fim a toda atividade de busca. Impende investigar, sem nenhum "motivo" ou propósito, os fatos concernentes ao tempo e se existe um estado atemporal. Tal investigação requer que não se tenha crença alguma, não se esteja ligado a nenhuma religião ou organização dita espiritual, que não se siga nenhum guru e, portanto, não se esteja sujeito a nenhuma autoridade - inclusive, e principalmente, à deste orador. Porque as pessoas são facilmente influenciáveis, excessivamente crédulas, ainda que sejam "sofisticadas" e muito sabedoras; mas estão sempre ansiando por alguma coisa, sempre a desejar e, por essa razão, crêem.

Assim, a mente que investiga para descobrir o que é religião deve achar-se inteiramente livre de qualquer forma de crença, de qualquer forma de medo; porque o medo, conforme já explicamos, é um elemento deformador, produtivo de violência e agressão. Por conseguinte, ao investigarmos o estado religioso e seu movimento, devemos achar-nos livres do temor. Isso requer sinceridade e humildade.

No tocante à maioria de nós, a vaidade é um dos maiores impedimentos. Porque, tendo lido muito, tendo assumido compromissos com algum guru que anda a oferecer a sua filosofia, pensamos saber, pelo menos um pouco, e esse é o começo da vaidade. Ao averiguarmos uma questão tão importante como esta, precisamos fazê-lo com isenção, isto é, sem nada sabermos a seu respeito. Vocês, de fato, não sabem nada, sabem? Ignoram o que é a Verdade, o que é Deus - se tal entidade existe - o que é uma mente religiosa. Lêem livros que tratam desta questão, da qual se fala há milênios e estão vivendo com base no conhecimento e nas experiências de outros, com base na propaganda. É necessário pôr tudo isso de lado, se desejam descobrir alguma coisa; por conseguinte, a investigação desta matéria é uma coisa sumamente "séria". Se desejam "brincar", existem entretenimentos de toda espécie: os chamados espirituais, os de cunho religioso; mas estes não têm valor algum para o homem de reflexão.

Para investigar o que é a mente religiosa, devemos estar livres de nosso condicionamento, de nosso cristianismo, de nosso budismo, com a respectiva propaganda de milhares de anos, a fim de que tenhamos isenção para observar. Isso é sobremaneira difícil, porque tememos achar-nos sós. Desejamos segurança, externa e internamente; por isso, dependemos dos outros - do sacerdote, do guia espiritual, do guru que diz: "Experimentei e, portanto, sei". Temos de estar completamente sós - mas não, isolados. Há vasta diferença entre estar isolado e estar completamente só, ser um todo não fracionado. O isolamento é um estado de espírito em que cessaram as relações e, em nossa vida e atividades diárias, erguemos (consciente ou inconscientemente) uma muralha em torno de nós para não sofrermos danos. Esse isolamento, naturalmente, impede qualquer espécie de relação. "Estar só" implica que a pessoa não depende de outra, psicologicamente, não está apegada a ninguém; isso não é dizer que não há, então, amor; o amor não é apego. "Estar só" significa que, profundamente, interiormente, não existe nenhum movimento de medo e, por conseguinte, nenhum movimento de conflito.

Se me acompanharam até aqui, podemos passar a investigar o que exprime disciplina. Geralmente, disciplina é para nós uma espécie de "treinamento", de repetição, um meio de vencer um obstáculo, ou de resistir, reprimir, controlar, ajustar. Tudo isso está implicado na palavra "disciplina", tal como a consideramos. Já o significado etimológico da palavra é "aprender".

A mente que quer aprender deve ter curiosidade, vivo interesse; e, quanto à mente que "já sabe", esta não tem possibilidade de aprender. Disciplina, por conseguinte, significa aprender por que razão controlamos, reprimimos, por que razão há medo, porque nos ajustamos, comparamos e, conseqüentemente, nos vemos em conflito. O próprio ato de aprender produz ordem; não a ordem criada segundo um plano ou padrão: na mesma investigação da confusão, da desordem, existe ordem. Em regra, vivemos confusos por dúzias de razões, que, por ora, não precisamos examinar. Necessitamos aprender sobre a confusão, sobre a vida desordenada que estamos levando; não nos cabe tratar de estabelecer a ordem na confusão, ou na desordem, mas, sim, aprender sobre a confusão e a desordem. Assim, enquanto aprendemos, nasce a ordem.

A ordem é uma coisa viva, e não uma coisa mecânica; a ordem, por certo, é virtude. Na mente que se acha confusa, que se ajusta, que imita, não existe ordem, porém conflito. E em conflito a mente se acha em desordem e, deste modo, é sem virtude. Com esse investigar, com esse aprender, vem a ordem, e a ordem é virtude. Observem-se, vejam o estado de desordem em que se encontra sua vida - tão confusa e mecânica! Nesse estado, queremos descobrir uma maneira moral de viver com ordem e com uma mente sã. Como pode a pessoa confusa, que apenas sabe obedecer ou imitar, ter qualquer espécie de ordem, qualquer espécie de virtude? Examinando-se a moralidade social, vê-se que é totalmente imoral; poderá ser "respeitável", mas o que é respeitável é quase sempre sem ordem.

A ordem é necessária, porque só com ela é possível uma ação plena, e ação é vida. Mas nossa ação produz desordem; há a ação política, a ação religiosa, a ação atinente aos negócios, à família; todas essas ações são fragmentárias e, portanto e naturalmente, contraditórias. Você é um duro homem de negócios e, em casa, um meigo ente humano - pelo menos mostra sê-lo; aí há contradição e, por conseguinte, desordem. A mente em desordem não tem possibilidade de compreender o que é virtude. E, hoje em dia, com a licença existente em todos os sentidos, não existe ordem nem virtude. A mente religiosa necessita dessa ordem não obediente a nenhum padrão ou plano estabelecido por você ou por outrem. Mas, essa ordem, esse senso de retidão moral, só vem quando se compreende a desordem, a confusão, o caos em que estamos vivendo.

O que acabamos de dizer visa a mostrar como lançar as bases da meditação. Se não lançarmos essas bases, a meditação se tornará uma fuga. Com essa espécie de meditação pode-se ficar brincando toda a vida, e é isso o que a maioria das pessoas está fazendo: vivendo vidas medíocres, confusas, desordenadas e encontrando maneiras de quietar a mente, pois há tanta gente a prometer "uma mente quieta" (o que quer que isso signifique).

Assim, para a mente ardorosa, pois trata-se de uma coisa importante e não de uma brincadeira é necessário estar-se livre de toda crença, de toda e qualquer ligação porque nós estamos ligados ao todo da vida, e não a um fragmento dela. Em maioria estamos vinculados a alguma revolução física, política, a um movimento religioso, a uma espécie de vida espiritual, monástica, etc. Todas essas coisas são ligações fragmentárias. Falamos sobre liberdade porque dela necessitamos para ligarmos o nosso ser, a nossa energia, vitalidade e paixão à totalidade da vida e não a uma de suas partes. Podemos então começar a investigar o que significa meditar.

Não sei se já consideraram esta questão da meditação. Provavelmente alguns de vocês têm "brincado de meditar", procurando controlar seus pensamentos, seguir diferentes sistemas, mas isso não é meditação. Temos de abrir mão de todos os sistemas que se nos têm oferecido: sistema Zen, Meditação Transcendental, etc. - armadilhas trazidas da Índia e da Ásia, nas quais tanta gente se deixa aprisionar. Precisamos examinar a questão dos sistemas, dos métodos, e espero tenham vontade de fazê-lo; porque nós estamos participando, todos juntos, no exame deste problema.

Quando temos de seguir um sistema, que sucede à nossa mente? Que implicam os sistemas e os métodos? Um guru. Não sei porque eles se denominam, a si próprios, "gurus". Não encontro um termo suficientemente forte com que reprovar a classe dos gurus, com sua autoridade (eles pensam que sabem). O homem que diz "Eu sei", esse homem não sabe. Ou, se ele diz "Experimentei a Verdade", desconfiem dele decididamente. São estes os que oferecem os sistemas. Um sistema envolve: praticar, seguir, repetir, alterar "o que realmente é" e, por conseguinte, aumentar o conflito. Os sistemas tornam a mente mecânica, não libertam ninguém; poderão prometer a liberdade no fim de tudo, mas a liberdade está no começo e não no fim. Se querem investigar a verdade sobre qualquer sistema, sem terem liberdade, logo de início, acabarão então, fatalmente, adotando um método e com a mente incapacitada de ser sutil, ágil, sensível. Podem, pois, abandonar completamente todos os sistemas. O importante não é controlar o pensamento, mas compreendê-lo, compreender as origens, os começos do pensamento, que se acham na própria pessoa. Quer dizer, o cérebro armazena "memórias" (isso vocês mesmos podem observar, e não necessitam de ler livros sobre a matéria); se ele não armazenasse "memórias", seria completamente incapaz de pensar. A memória é o resultado da experiência, do conhecimento, de cada um ou da comunidade, da família, da raça, etc. O pensamento brota daquele reservatório de "lembranças". O pensamento, portanto, jamais é livre, é sempre velho; não existe essa coisa chamada "liberdade de pensamento".

O pensamento, em si, não pode ser livre, embora fale sobre liberdade; em si próprio, ele é o resultado das "memórias", experiências e conhecimentos trazidos do passado; em conseqüência, ele é velho. Todavia, necessitamos desse acervo de conhecimentos, pois, sem ele não poderíamos funcionar, não poderíamos falar uns aos outros, não poderíamos voltar para casa, etc. O conhecimento é de essencial importância.

Compete-nos descobrir se, na meditação, o conhecimento tem fim, se nela estamos livres do conhecido. Se a meditação é a continuação do conhecimento, a continuação de tudo o que o homem acumulou, não há, então, nela, liberdade. Só há liberdade se compreendemos a função do conhecimento e, por conseguinte, dele nos achamos livres.
Estamos explorando o campo do conhecimento, para vermos quando deve funcionar e quando se torna um empecilho à investigação mais profunda. Se as células cerebrais continuam ativas, só podem funcionar no campo do conhecimento. É só isso que o cérebro pode fazer, ou seja, funcionar no campo da experiência, do conhecimento, no campo do tempo, vale dizer, no passado. Meditação é descobrir se existe um campo ainda não contaminado pelo conhecido.

Se, meditando, continuo com o que antes aprendi, com o que já sei, estou então vivendo no passado, no campo de meu condicionamento. Nesse campo não há liberdade. Posso adornar a prisão em que estou vivendo, fazer coisas diversas dentro dela, mas há sempre uma limitação, uma barreira. Cumpre, pois, descobrir se as células cerebrais, evolvidas através de milênios, podem estar totalmente quietas e em correspondência com uma dimensão desconhecida. Quer dizer, pode a mente tornar-se tranqüila?

Foi sempre esse o problema das pessoas religiosas, através dos séculos, reconhecendo que se necessita de total serenidade, porque só então se pode ver. Se estamos a tagarelar, com o espírito em movimento, a correr para todos os lados, é óbvio que não podemos ver nem escutar totalmente. Assim, dizem as pessoas religiosas: "Controle a mente, segure-a, coloque-a numa prisão"; não descobriram uma maneira de pôr a mente num estado de completa e absoluta quietude. Dizem: "Não cedam a nenhum desejo, não olhem para uma mulher, para os belos montes, para as árvores e a beleza da Terra, porque se o fizerem, aquela beleza poderá sugerir-lhes a lembrança de uma mulher ou um homem. Portanto, controlem-se, perseverem, concentrem-se". Assim fazendo, os põem em conflito e, desta maneira, haverá mais o que controlar, mais o que superar. Sucede isso há milênios, por se ter percebido a necessidade de uma mente tranqüila. Ora, como pode a mente serenar sem esforço, sem controle, sem se lhe traçarem limites? No momento em que se pergunta "como?", cria-se a necessidade de um sistema. Portanto, aqui não há como".

Pode a mente quietar-se? Não sei o que irão fazer ao perceberem verdadeiramente a necessidade de terem aquela mente que, estando absolutamente quieta, se torna sobremodo sensível e sutil. Como pode isso verificar-se? Esse é um problema de meditação, porque só essa é a mentalidade religiosa. Só ela é capaz de ver o todo da vida como uma unidade, como um movimento unitário, não fragmentado. Essa mentalidade, por conseguinte, atua totalmente e não fragmentariamente, porque sua ação emana da quietude completa.

A verdadeira base é uma vida de relação total, uma vida com ordem e, por conseguinte, virtude, uma vida interior simples e, portanto, austera - a austeridade da simplicidade profunda, própria da mente isenta de conflito. Se lançarem essa base, facilmente, sem esforço algum (porque, tão logo se introduz o esforço, há conflito), verão a sua genuína valia. É, conseqüentemente, a percepção de "o que é" que realiza a transformação radical.

Só a mente tranqüila pode compreender que, em sua quietude, há um movimento bem diverso, de diferente dimensão, de outra qualidade. Esse movimento, sendo inefável, não pode ser expresso em palavras. O que pode ser descrito só nos leva até este ponto: o ponto em que, tendo lançado a base correta, percebemos a necessidade, o valor e a beleza da serenidade espiritual.

Para a maioria, a beleza se encontra em alguma coisa: um edifício, uma nuvem, a forma de uma árvore, um lindo rosto. A beleza está "lá fora" ou faz parte da natureza da mente em que não há atividade egocêntrica? Porque a meditação, tão importante como a alegria que nela encontramos, é a compreensão da beleza. A beleza, com efeito, é o total abandono do “eu"; e os olhos que abandonaram o "eu" podem ver as árvores e sua pujança, e a formosura de uma nuvem. Isso acontece quando não existe nenhum centro constituído pelo "eu". É uma coisa que sucede a qualquer de nós, - não é verdade? - ao vermos, por exemplo, uma majestosa montanha que subitamente se nos descortina. Tudo foi varrido para o lado, exceto aquela majestade. A montanha, a árvore, nos absorve completamente.

Algo semelhante sucede a uma criança que se diverte com um brinquedo; o brinquedo a absorve e, se se quebra, ela volta a suas ocupações habituais, suas travessuras, seus choros. Conosco se dá a mesma coisa, ao vermos a montanha ou a árvore solitária no alto de um monte, elas nos absorvem. E nós desejamos absorver-nos em alguma coisa - numa idéia, numa atividade, num compromisso, numa crença, ou noutra pessoa tal qual a criança com seu brinquedo.

A beleza, pois, significa sensibilidade - um corpo sensível, graças a uma alimentação adequada e a uma maneira correta de viver. A mente se torna, então, naturalmente quieta. Não é possível aquietar a mente, porque você é que é o causador de todos os males, você é que se acha perturbado, ansioso, confuso. Como pode torná-la tranqüila? Mas, ao compreender o que é quietude e o que é confusão, ao entender o que é sofrimento e que é possível acabar com ele, e, também, ao compreender o que é o prazer - então, dessa compreensão, surge uma mentalidade serena; não precisamos buscá-la. Devemos partir do começo, e o primeiro passo é o último passo. Eis o que é meditação.

INTERROGANTE: Faz o senhor a apologia da beleza das montanhas, dos montes, do céu. Essa apologia não é útil para o comum das pessoas. A apologia que serve é a da sordidez.

KRISHNAMURTI: Está bem; façamos a apologia das ruas imundas de Nova Iorque, a apologia da miséria, da pobreza, dos guetos, das guerras, para as quais cada um de nós contribuiu. Vocês sentem de outro modo, porque se separaram, se isolaram; portanto, não estando em relação com os outros, corrompem-se e permitem que a corrupção se espalhe pelo mundo. Eis porque a corrupção, a poluição, as guerras, o ódio, não podem ser sustados por nenhum sistema político ou religioso, por nenhuma organização. Cumpre haver transformação. Não o percebem? Precisam deixar de ser o que são. Não à força de "querer"; meditação é expurgar a mente da vontade. Verifica-se, então, uma ação de espécie inteiramente diferente.

INTERROGANTE: Se pudermos alcançar o privilégio de nos conscientizarmos, como poderemos ajudar àqueles que se acham condicionados, àqueles que abrigam um profundo ressentimento?

KRISHNAMURTI: Permita-me interrogá-lo porque usa a palavra “privilégio”. Que há de sagrado ou de "privilegiado" em estar-se conscientizado? Essa é uma coisa natural, não acha? - estar ciente. Se você tiver ciência de seu condicionamento, da agitação, da sordidez, da miséria, da guerra, do ódio, existentes no mundo - se de tudo isso estiver inteirado, estabelecerá uma relação tão completa entre você - que ficará em relação com todos os outros entes humanos. Verá, então, que não causará dano aos outros; eles é que causam dano a si próprios. E, assim o que se pode fazer é sair pelo mundo a pregar, a falar - mas não com o desejo de ajudá-los, compreende? Esta é a coisa mais terrível que se pode dizer: “Quero ajudar a outrem”. Quem é você, quem sou eu, para ajudar os outros?

Senhor, a beleza da árvore ou da flor não "deseja" ajudá-lo. A você é que cabe olhar a sordidez ou a beleza; e se é incapaz de olhá-las, trate de descobrir porque se tornou tão indiferente, tão insensível, tão superficial e vazio. Se o descobrir, ver-se-á num estado em que a vida fluirá como as águas, e você nada terá de fazer.

INTERROGANTE: Qual a relação entre a percepção das coisas exatamente como são e a consciência?

KRISHNAMURTI: Você só conhece a consciência pelo seu conteúdo, e esse conteúdo são as coisas que estão sucedendo no mundo, do qual você faz parte. O esvaziar desse conteúdo não significa ficar privado da consciência, senão ingressar numa dimensão bem diferente. Sobre essa dimensão não é possível especular. O que podemos fazer é tratarmos de descobrir se é possível descondicionarmos a mente pela conscientização, pelo tornar-nos atentos.

INTERROGANTE: Eu próprio não sei o que é o amor, o que é a Verdade, ou o que é Deus. Mas diz o senhor que "amor é Deus", em vez de "Amor é Amor". Poderá explicar porque diz "Amor é Deus"?

KRISHNAMURTI: Eu não disse que amor é Deus.

INTERROGANTE: Lendo um de seus livros ...

KRISHNAMURTI: Desculpe a interrupção ... não leia livros! Daquela palavra se tem usado e abusado. Ela está "carregada" dos desesperos e esperanças do homem. Você tem o seu Deus, e os comunistas têm o deles. Assim, se me permite sugeri-lo, trate de descobrir o que é o Amor. Só descobrirá o que é o amor, se souber o que ele não é. Não, se o souber intelectualmente, porém, na vida real, afastando tudo o que o nega - o ciúme, a ambição, a avidez; as divisões que diariamente se verificam; eu e você, nós e eles, brancos e pretos. Infelizmente, as pessoas não o fazem, porque isso requer energia e a energia só vem ao observarmos a realidade, sem dela fugirmos. Vendo o que realmente é, então, observando-o, teremos a energia necessária para transcendê-lo. Não podemos transcendê-lo, se forcejamos para evitá-lo, para traduzi-lo ou superá-lo. Note simplesmente "o que é", e descobrirá o que é amar. O amor não é prazer. E sabe o que significa descobri-lo realmente, você mesmo, em seu interior? Significa já não haver medo, nem apego, nem dependência, mas tão somente uma relação isenta de qualquer divisão.

INTERROGANTE: Pode-me dizer algo sobre a função do artista na sociedade? Desempenha ele algum papel além do que lhe é atribuído?

KRISHNAMURTI: Que é um artista? Aquele que pinta quadros, escreve poesias, aquele que busca expressar-se por meio da pintura ou escrevendo livros ou dramas? Porque separamos o artista de nós outros? Ou, porque diferenciamos o intelectual dos demais indivíduos? Colocamos o intelectual num certo nível, o artista noutro nível, talvez mais alto, e o cientista num nível mais elevado ainda. Depois, perguntamos: "Qual a função deles na sociedade?" Não se trata de saber qual é a função deles, mas qual é a sua junto à coletividade. Porque foi você que criou a desordem existente. Qual a sua função? Descubra-o. Isto é, trate de descobrir porque vive dentro deste mundo de sordidez, ódio e aflição; aparentemente, ele não o atinge.

Como vê, o senhor escutou estas palestras, participou em algumas das coisas ditas e compreendeu - nós o esperamos - muitas delas. Com isso pode tornar-se um "centro de relações corretas" e, portanto, compete-lhe transformar esta terrível, corrupta e destrutiva sociedade.

INTERROGANTE: Poderá falar sobre o tempo psicológico?

KRISHNAMURTI: O tempo é velhice, o tempo é sofrimento, o tempo não respeita ninguém. Há o tempo cronológico, medido pelo relógio. Este é indispensável; do contrário, não poderíamos ter condução, viajar, preparar uma refeição, etc. Mas, nós aceitamos outra espécie de tempo, ou seja "amanhã eu serei, amanhã mudarei, futuramente me tornarei isto ou aquilo"; psicologicamente, criamos este tempo - amanhã. Mas, existe esse dia imediato? Eis uma pergunta que tememos fazer a sério. Porque nós desejamos o amanhã: “amanhã terei o prazer de me encontrar com você, amanhã eu compreenderei, minha vida será diferente. Amanhã conhecerei a iluminação. E desse modo o futuro se torna a coisa mais importante de nossa vida. Ontem você se deleitou sexualmente, fruiu vários prazeres, e deseja repeti-los no dia seguinte, ou logo depois.

Faça a si próprio esta pergunta, e descubra a verdade respectiva: "Existe realmente um amanhã fora do pensamento" que projeta o amanhã? O futuro, com efeito, é uma invenção do pensamento. Se, psicologicamente, não houvesse um amanhã, que aconteceria, hoje, em sua vida? Uma tremenda revolução, não é? Sua ação se transformaria radicalmente, não é assim? Você seria, agora, um ente total e não um ente projetado do passado para o presente e daí para o futuro.

Tal equivale a viver e morrer todos os dias. Faça-o, e verá o que exprime viver completamente hoje. E isso não é amor? Ninguém diz "Amanhã amarei". Ou amamos ou não amamos. O amor não reside no tempo; nele só está o amargor, porque o amargor, tal como o prazer, é pensamento. Devemos, pois, descobrir o que é o tempo, e descobrir se existe um "não amanhã" (no tomorrow). Isso é viver; há então aquela vida eterna - porque, na Eternidade, não existe tempo.

Krishnamurti

Nenhum comentário: