sábado, 23 de maio de 2009

O Brasil dos budas



Foto: STEIN/PAPA LUZ


A religião budista se expande no País em várias correntes e atrai brasileiros ocidentais de diferentes idades e classes sociais



GISELE VITÓRIA

Eles crescem em silêncio. Diferente da cortês catequese dos católicos ou da pregação barulhenta dos evangélicos, essa doutrina não se preocupa em alardear a fé nem tem como missão arrebanhar fiéis. Quantos são no Brasil, pouco lhes parece importar. Sem nenhuma inquietação contábil, eles estimam números que atingem até um milhão de praticantes. A dificuldade vem justamente da fragmentação de inúmeras correntes, resultado da pródiga ramificação de uma árvore plantada na Índia há 2,5 mil anos. Do início do século até os anos 50, os budistas eram restritos aos imigrantes e descendentes japoneses, mas nos últimos anos ganharam uma extraordinária legião de brasileiros de origem ocidental. E, silenciosamente, continuam avançando. Para todas as escolas do budismo, a prática do silêncio é reconfortante e poderosa. Numa comparação oportuna, se o cristianismo nasceu das palavras de Cristo, o budismo surgiu de um silêncio de Buda. Calmo e concentrado, promete abrir portas para o autoconhecimento, dando clareza à mente, aos sentidos e aos sentimentos. Talvez por isso a filosofia budista esteja conquistando tantos admiradores num país de tradição cristã. Dispostas a compreender e a distinguir melhor o que acontece com elas mesmas e ao seu redor, pessoas de diferentes idades, formações e classes sociais vêm encontrando na paz budista um caminho para atenuar seus sofrimentos e, através da prática milenar da meditação, aproximar-se do que chamam um estado iluminado.

Um dos reflexos dessa expansão foi a recente mudança de endereço para o Brasil de três importantes mestres estrangeiros do budismo tibetano. A presença deles no País certamente vem motivando o interesse pela religião. Com seus mantras, thankas (pinturas sobre tecido) e adornos coloridos, a escola tibetana ganhou força nos últimos cinco anos, especialmente depois da vinda ao Brasil do 14� Dalai-Lama para a Rio-92. Ao mesmo tempo, percebe-se que os praticantes de origem ocidental tornaram-se maioria em várias seitas budistas japonesas. Em Ibiraçu, no Espírito Santo, o mosteiro zen Morro da Vargem é visitado por quatro mil pessoas anualmente e ainda recebe sete mil crianças do Estado, que aprendem educação ambiental. Procura semelhante também movimenta o mosteiro zen Pico de Raios, em Ouro Preto, Minas Gerais. O interesse dos brasileiros motivou o reverendo budista Murilo Nunes Azevedo, 76 anos, diretor de um templo da seita japonesa Jodo Shinshu no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, a traduzir para o português o Buda Dharma. A obra tem 200 volumes. "O budismo dá a possibilidade de o homem ser seu próprio Deus. É isso que procura o homem contemporâneo", resume Azevedo.

Um conto tibetano sobre a origem do mundo talvez explique a diferença entre o budismo e as religiões cristãs. Segundo o mito, o universo não teria sido criado, mas nascido de um princípio feminino, chamado a Grande Mãe. Diferente do Deus cristão, ela não teve a intenção de construir e impor leis ao mundo. Enquanto Deus precisou se distanciar para criá-lo, a Grande Mãe lhe deu vida espontaneamente, como se fossem um só elemento. Na verdade, essa história explica o preceito budista sobre a unidade e interdependência de todas as coisas, inclusive a do ser humano com suas divindades. Mostra ainda que a sua filosofia não depende de dogmas nem de fidelidade religiosa. Tampouco há o medo do fogo do inferno ou a crença no perdão dos pecados. Cada um é discípulo de si e único responsável por sua salvação. A palavra Buda significa supremo iluminado, aquele que está liberto do sono da ignorância e inundado de sabedoria.

O príncipe hindu Sidarta Gautama, o Buda, nasceu no Norte da Índia no século VI a.C. Sacerdotes o predestinaram a ser um grande homem que libertaria a humanidade dos sofrimentos. Impressionado, o pai do Sidarta o criou numa área confinada do palácio, alheio às misérias e dores do mundo. Um dia ele viu um moribundo e resolveu procurar a saída para o sofrimento humano. Renunciou à vida de prazeres e partiu pelo mundo em busca da verdade. Foi venerado enquanto viveu, mas nunca proclamou sua divindade. Deixou discípulos que difundiram seus ensinamentos. Só muitos séculos depois de sua morte, surgiram representações divinas dele. Das mil imagens do Buda, a que primeiro vem à cabeça dos brasileiros leigos é a do Buda gordo. Na verdade, Buda nunca foi gordo. Essa imagem é apenas a que mostra a sua generosidade. A base do budismo é levar o indivíduo à correta compreensão da vida, o que o conduz às quatro nobres verdades: reconhecer a existência do sofrimento, a sua causa, o caminho que leva ao estancamento da dor - que é o chamado caminho do meio -, e a eterna felicidade - o nirvana. Como alcançá-lo é um desafio para todos os devotos. Para entender o avanço do budismo no Brasil, é preciso mapear as diversas faces da sua doutrina. Mesmo que as diferenças entre as linhagens sejam de método e também de adaptação à cultura de cada país, é como se fossem várias religiões dentro de uma só.

Parece estranho que uma religião nascida na Índia no século VI a.C. vista o fascinante véu da novidade. Embora algumas seitas japonesas tenham chegado ao Brasil no início do século junto com os imigrantes japoneses, só nos últimos dez anos o budismo ganhou popularidade entre brasileiros de origem ocidental. Pelo menos a metade das 16 correntes existentes no Japão tem comunidades fixadas de Norte a Sul do País. Alguns praticantes costumam dizer que a religião entrou no País pela porta dos fundos, e, devido à falta de respaldo acadêmico, teria demorado tanto tempo para se fazer notar. Mas, não há dúvida, a ausência de um perfil envangelizador deixou o budismo anos e anos fechado nos redutos orientais. Curiosamente, enquanto boa parte da colônia nipo-brasileira foi se afastando da prática budista ao longo de meio século - seduzida pela crescente ocidentalização de sua cultura -, os brasileiros não só se aproximaram como aderiram a ela.

"Hoje as pessoas estão mais preocupadas com a auto-realização e com uma busca interna. Por isso o budismo cresce", acredita o monge Gyoshin Gain, nome zen-budista do engenheiro civil Paulo Melo, 45 anos. Gain é abade do mosteiro zen Pico de Raios, erguido a 1,5 mil metros de altitude em meio às serras de Ouro Preto, em Minas Gerais. O coordenador de jovens da seita japonesa Brasil Soka Gakkai Internacional (BSGI), Júlio China, garante que o aspecto prático do budismo explica essa expansão. "Converter a fé em ação é beneficiar as pessoas e amenizar o próprio carma", diz China. Para tanto, os adeptos da Soka Gakkai dedicam parte do seu tempo a atividades beneficentes, como doação de alimentos e cultivo de hortas comunitárias. Hoje, só 20% dos seus 250 mil praticantes brasileiros são de origem oriental. "Dos 200 integrantes do nosso coral, apenas 15 são japoneses", diz o administrador de empresas Marcelo Assunção, 29 anos, analista de desenvolvimento da Cobansa e integrante da BSGI desde os sete. A família Assunção buscava no budismo forças para enfrentar o alcoolismo do pai, Jorge. "Encontramos o equilíbrio, curamos a doença e demos a volta por cima", conta. A Soka Gakkai também conquistou os corações dos atores Edson Celulari e Cláudia Raia, que se casaram em um de seus templos. Por causa deles o ator Diogo Vilela e a atriz Beth Faria converteram-se ao budismo. Vilela não se converteu oficialmente. "Rezo em casa no meu oratório. O budismo lida com o bem e o mal de uma forma não moralista." Beth Faria conheceu o budismo há oito anos e garante que a religião lhe provocou uma revolução interna: "Sempre tive mau gênio e me tornei mais calma, alegre e concentrada."

O mergulho no Dharma - a doutrina budista - vem trazendo transformações na vida de muitos brasileiros. Na sua juventude, o capixaba Cristiano Bitti estudava medicina e direito, mas vivia sob a influência da contracultura, uma das portas do budismo para o Ocidente. Tornou-se o monge Kogaku Daiju, que há 15 de seus 44 anos atua como abade do mosteiro zen Morro da Vargem, nas montanhas de Ibiraçu, no Espírito Santo. No início, enfrentou a hostilidade daqueles que desconheciam o zen-budismo. "Nos cuspiam na rua e diziam que éramos da religião do diabo. Isso por causa das roupas pretas e da cabeça raspada", lembra-se hoje com bom humor. "Aos poucos foram se acostumando aos nossos hábitos." Agora, frequentemente recebem em seus retiros personalidades como o cantor Ney Matogrosso. Lá, o astro da MPB come em silêncio, lava pratos, dorme num tatame e toma banho quente, imerso numa tina japonesa conhecida como furô. Outros visitantes assíduos são os freis Betto e Leonardo Boff, as atrizes Lucélia Santos e Odete Lara e o governador do Espírito Santo,Vítor Buaiz. "Ter o autoconhecimento melhora as relações humanas, o que é essencial também na política", explica Buaiz. Os hábitos budistas do governador mudaram até a rotina palaciana: em vez do uísque oferecido pelo seu antecessor aos convidados, serve-se chá.

Em julho, o mosteiro capixaba ordenará monja a ex-costureira cearense Maria Goretti Menezes Pereira, 40 anos. Desde 1995, ela é a noviça Daien. "Sou hoje uma pessoa muito feliz. Esse é o tipo de vida que eu quero", diz. Simples e disciplinada, ela possui apenas uma tijela, dois trajes e raspa a cabeça diariamente, como reza a tradição zen. Depois da ordenação, seguirá para se aperfeiçoar no Japão. "Penso que minha sensação de ser ordenada monja é a mesma de alguém que, em poucos meses, receberá o diploma de médico." E assim como Daien descobriu sua vocação, várias crianças em São Paulo despertam para o universo budista. No templo Soto Zenshu Busshinji, no bairro da Liberdade, em São Paulo, Nicholas Stahel, 11 anos, descobriu o fascínio do zazen, a meditação sentada. "É só relaxar e pensar que você é o Buda", explica. Flávia de Macedo Davis, 12 anos, desfrutou de um bem-estar parecido. "É uma vibração que me deixa segura", diz.

O budismo tibetano começou mesmo a atrair os brasileiros há dez anos, com a vinda do Gangchen Rimpoche, o primeiro lama a visitar o País. Mas o encanto cresceu ainda com a chegada, em maio, de um importante mestre. O lama Chagdug Tulku Rimpoche é o mais ilustre morador do bucólico município de Três Coroas, no Rio Grande do Sul. Chagdug se transferiu dos Estados Unidos para cá, com a tarefa de difundir os ensinamentos na América Latina. Recentemente, Chagdug ordenou lama o físico gaúcho Alfredo Aveline, 47 anos. Especialista em física quântica, Aveline diz que foi buscar na religião explicações que não encontrou na ciência. "O cientista constrói a realidade que ele investiga. Já o budismo examina a realidade como ela é." Antes de Chagdug, mudou-se também para o Brasil a lama americana Tsering Everest, que, junto com o marido - igualmente lama -, comanda o centro tibetano Chagdug Gonpa Brasil, em São Paulo. Foi depois de conhecê-la que a matemática Celina Vasconcelos Porto, 37 anos, superintendente de produtos de câmbio de um grande banco, decidiu assumir-se budista. "Aqui não existe a fé cega. Ela é adquirida em cima de questionamentos." Embora o marido e os dois filhos não sejam adeptos da religião, Celina abraçou o budismo como filosofia de vida. "Consigo lidar melhor com as pessoas. Minha relação com a ambição também mudou. Quando fui promovida, me senti mais responsável do que vaidosa."

Em qualquer de suas escolas, o budismo ensina que existe uma felicidade duradoura e estável. E ainda que todos têm potencial para experimentá-la. "A doutrina é muito fácil. Sua prática traz calma, vigilância, atenção e harmonia para se alcançar o equilíbrio. As pessoas levam uma vida muito estressada por aqui e no budismo se encontram tranquilas e felizes", afirma o monge hinayana Puhulwelle Vipassi, do Sri Lanka, em seu aconchegante templo em Santa Teresa, no Rio, onde vive há oito anos. As razões dessa felicidade estariam dentro da mente, e os meios para atingi-la podem ser praticados por qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer hora. "É a paz interior. Mas se engana quem pensa que a paz é um processo passivo. Ela é um estado energético e ativo. Você pode estar ocupadíssimo, em alta velocidade e ter paz interna. Essa tranquilidade traz dinamismo e ação", explica Isabel César, do Centro de Dharma Tibetano Shi De Choe Tsog, mãe do lama adolescente Michel.

As propostas de Buda foram feitas para ser aplicadas em vida e a principal delas é a de que o homem seja responsável por tudo o que faz, traçando a rota de seu destino. "As religiões aprisionam as pessoas pelas instituições. Para nós importa trabalhar muito para não sermos gurus. As pessoas devem ter autonomia, não procurar depender do monge nem do budismo. Devem depender de si próprias", reforça o monge zen Daiju, do mosteiro capixaba. "Se um católico considera que sua religião é o estudo de si mesmo então ele também é um budista. E estudar a si mesmo, paradoxalmente, é esquecer-se de si, integrando-se a tudo o que o cerca. Padres que foram iniciados na disciplina budista me disseram que, depois disso, entenderam melhor a Bíblia", conta Daiju. O monge reforça que o budismo não tem a intenção de disputar fiéis nem de converter. "As pessoas se desarmam porque não estamos disputando nada. Apenas fortalecendo a fé do povo brasileiro."

Colaboraram: André Jockyman, de Porto Alegre; Valéria Propato, do Rio; e Ivan Padilla, de Belo Horizonte

Nenhum comentário: