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sábado, 18 de agosto de 2007
O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS, Carl Sagan, 1995.
A CIÊNCIA VISTA COMO UMA VELA NO ESCURO
Companhia das Letras, 1997.
Apesar de impregnados pelo neoplatonismo da cultura em que estavam imersos, os primeiros padres da Igreja ansiavam por se separar dos sistemas de crenças "pagãos". Ensinavam que a essência da religião pagã consistia no culto de demônios e homens, ambos interpretados erradamente como deuses. Quando São Paulo se queixou (Efésios 6:14) da maldade em lugares celestiais, não estava se referindo à corrupção no governo, mas aos demônios, que viviam naqueles locais:
Pois não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas desse século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.
Desde o início, os demônios significavam muito mais do que uma simples metáfora poética para o mal no coração dos homens.
Santo Agostinho ficava exasperado com os demônios. Ele cita o pensamento pagão prevalecente na sua época: "Os deuses ocupam as regiões mais elevadas, os homens as mais baixas, os demônios a região intermediária... Eles têm a imortalidade do corpo, mas as paixões da mente em comum com os homens". No livro VIII de A Cidade de Deus (iniciado em 413), Agostinho assimila essa antiga tradição, substitui os deuses por Deus, e converte os demônios em diabos - afirmando que eles são, sem excessão, malignos. Não têm virtudes redentoras. São a fonte de todo mal espiritual e material. Ele os chama de "animais aéreos [...] muito ansiosos por infligir dano, totalmente opostos à retidão, inchados de orgulho, pálidos de inveja, sutis no engano". Podem se declarar mensageiros entre Deus e os homens, disfarçando-se como anjos do Senhor, mas essa sua atitude é uma armadilha que nos leva à destruição. Podem assumir qualquer forma, e sabem muitas coisas - "demônio" significa "conhecimento" em grego -, especialmente sobre o mundo material. Por mais inteligentes que sejam, não têm caridade. Atacam "as mentes cativas e ludibriadas dos homens", escreveu Tertuliano. "Eles têm a sua moradia no ar, as estrelas são os seus visinhos, e as suas relações são com as nuvens".
páginas 122 e 123.
Os demônios, os "poderes do ar", descem do céu e tem relações sexuais ilícitas com as mulheres. Agostinho acreditava que as bruxas eram o produto dessas uniões proibidas. Na Idade Média, assim como na Antigüidade clássica, quase todo mundo acreditava nessas histórias. Os demônios eram também chamados diabos ou anjos caídos. Os sedutores demoníacos das mulheres eram denominados íncubos; os dos homens, súcubos. Há casos em que as freiras falavam, com algum atordoamento, de uma semelhança extraordinária entre o íncubo e o padre confessor ou o bispo, e despertavam na manhã seguinte, segundo um cronista do século XV, "descobrindo-se sujas como se tivessem estado com um homem".
página 124.
A obsessão com os demônios começou a atingir um crescendo quando, em sua famosa bula de 1484, o papa Inocêncio VIII declarou:
Tem chegado a nossos ouvidos que membros de ambos os sexos não evitam manter relações com anjos, íncubos e súcubos malignos, e que por meio de suas feitiçarias, palavras mágicas, amuletos e conjuros eles sufocam, extinguem e abortam os filhos das mulheres.
além de gerar muitas outras calamidades. Com essa bula, Inocêncio dava início à acusação, tortura e execução sistemáticas de inumeráveis "bruxas" em toda a Europa. Elas eram culpadas do que Agostinho descrevera como "o ato criminoso de bulir com o mundo invisível". Apesar do imparcial "membros de ambos os sexos" na linguagem da bula, não causou surpresa o fato de as meninas e as mulheres terem sido as principais perseguidas.
página 125.
Nos julgamentos das bruxas, evidências atenuantes ou testemunhas de defesa eram inadmissíveis. De qualquer modo, era quase impossível apresentar álibis convincentes para as bruxas acusadas: as regras de evidência tinham um carater especial. Por exemplo, em mais de um caso o marido atestava que sua mulher estava dormindo nos braços dele no exato momento em que era acusada de estar brincando com o diabo num sabá de bruxas; mas o arcebispo explicava pacientemente que um demônio tomara o lugar da mulher. Os maridos não deviam imaginar que seus poderes de percepção podiam superar os poderes de simulação de Satã. As belas jovens eram forçosamente entregues às chamas.
Havia fortes elementos eróticos e misóginos - como era de se esperar numa sociedade sexualmente reprimida e dominada pelos homens, em que os inquisidores eram tirados da classe de padres pretensamente celibatários. Nos julgamentos, prestava-se bastante atenção à qualidade e à quantidade de orgasmos nas supostas cópulas das rés com os demônios ou com o Diabo (embora Agostinho tivesse se mostrado seguro de que "não podemos chamar o Diabo de fornicador"), e à natureza do "membro" do Diabo (frio, em todos os relatos). As "marcas do Diabo" eram encontradas "em geral sobre os seios ou nas partes pudentas", segundo o livro escrito por Ludovico Sinistrari em 1700. Em conseqüência, raspavam-se os pêlos púbicos e as genitálias eram cuidadosamente inspecionadas por inquisitores do sexo masculino. Na imolação da jovem de vinte anos, Joana d'Arc, depois que seu vestido pegou fogo, o carrasco de Rouen apagou as chamas para que os espectadores pudessem ver "todos os segredos que podem ou devem existir numa mulher".
A crônica dos que foram consumidos pelo fogo, somente na cidade alemã de Würtzburg, e apenas no ano de 1598, apresenta estatísticas e permite que nos confrontemos com um pouco da realidade humana:
O intendente do Senado, chamado Gering; a velha sra. Kanzler; a mulher gorda do alfaiate; a cozinheira do sr. Mengerdorf; um estranho; uma mulher estranha; Baunach, senador, o cidadão mais gordo de Würtzburg; o velho ferreiro da corte; uma velha; uma menina de nove ou dez anos; uma menina mais moça, sua irmãzinha; a mãe das duas meninas acima mencionadas; a filha de Liebler; a filha de Goebel, a menina mais bonita de Würtzburg; um estudante que sabia muitas línguas; dois meninos do Minster, cada um com doze anos; a filhinha de Stepper; a mulher que guardava o portão da ponte; uma velha; o filhinho do intendente do conselho da cidade; a mulher de Knertz, o açougueiro; a filhinha de colo do dr. Schultz; uma menina cega; Schwartz, cônego em Hatch...
E assim por diante. Alguns recebiam atenção humanitária especial: "A filhinha de Valkenberger foi executada e queimada privadamente". Houve 28 imolações públicas, cada uma com quatro a seis vítimas em média, nessa pequena cidade num único ano. Isso era um microcosmo do que estava acontecendo por toda a Europa.
páginas 127 e 128.
A bruxaria não era certamente o único delito que merecia tortura e morte na fogueira. A heresia era um crime ainda mais sério, e tanto católicos como protestantes o puniam com crueldade. No século XVI, o erudito William Tyndale teve a temeridade de pensar em traduzir o Novo Testamento para o inglês. Mas se as pessoas pudessem ler a Bíblia em sua própria língua, e não em latim arcaico, talvez formassem opiniões religiosas próprias e independentes. Poderiam conceber sua própria comunicação privada com Deus. Era um desafio à segurança de emprego dos padres católicos romanos. Quando Tyndale tentou publicar a sua tradução, foi caçado e perseguido por toda a Europa. Acabou capturado, garroteado e depois, por boas razões, queimado na fogueira. Seus exemplares do Novo Testamento (que um século mais tarde se tornaram a base da refinada tradução do rei Jaime) foram então procurados de casa em casa por destacamentos armados - cristãos defendendo piedosamente o cristianismo, ao impedir que outros cristãos conhecessem as palavras de Cristo. Esse estado de espírito, esse clima de absoluta certeza de que o conhecimento deve ser recompensado com a tortura e a morte, era pouco auspicioso para os acusados de bruxaria.
Queimar bruxas é uma característica da civilização ocidental que, com exceções políticas ocasionais, tem declinado desde o século XVI. Na última execução judicial de feiticeiras na Inglaterra, uma mulher e sua filha de nove anos foram enforcadas. O seu crime era ter provocado uma tempestade quando despiram as meias. Na nossa época, bruxas e djins são uma presença constante em brincadeiras infantis, o exorcismo de demônios ainda é praticado pela Igreja católica romana e outras religiões, e os adeptos de um culto ainda denunciam como feitiçaria as práticas rituais do outro. Ainda empregamos a palavra "pandemônio" (literalmente, todos os demônios). Ainda se diz que uma pessoa enlouquecida e violenta é demoníaca. (Foi só no século XVIII que a doença mental deixou de ser em geral atribuída a causas sobrenaturais; até a insônia tinha sido considerada um castigo infligido por demônios.) Mais da metade dos norte-americanos declaram aos pesquisadores de opinião que "acreditam" na existência do Diabo, e 10% tiveram contato com ele, experiência que Martinho Lutero afirmava ter regularmente. Num "manual de guerra espiritual" de 1992, intitulado Prepare for war, Rebecca Brown nos informa que o aborto e o sexo fora do casamento "resultarão quase sempre em infestação demoníaca"; que a meditação, a ioga e as artes marciais são construídas de modo a levar cristãos ingênuos a cultuar os demônios; e que "o rock não aconteceu pura e simplesmente", foi um plano arquitetado com muito cuidado por ninguém menos do que o próprio Satã. Às vezes "as pessoas amadas ficam diabolicamente presas e cegas". A demonologia ainda é, hoje em dia, parte de muitos credos sérios.
páginas 129 e 130.
http://www.highway.com.br/users/haagen/SAGAN07.HTM
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