domingo, 23 de setembro de 2007

Joseph Maitre — O cego


Allan Kardec

O Céu

e o

Inferno

SEGUNDA PARTE

Capítulo VIII

EXPIAÇÕES TERRESTRES



Joseph Maitre — O cego

Pertencia à classe mediana da sociedade e gozava de modesta abastança, ao amparo de quaisquer privações. Os pais o destinavam à indústria e deram-lhe boa educação, porém, aos 20 anos, ele perdeu a vista. Com perto de 50 anos, veio finalmente a falecer, isto em 1845. Dez anos antes fora acometido por outra enfermidade que o deixou surdo, de modo que só pelo tato mantinha relações com o mundo dos encarnados. Ora, não ver, já é um suplício; não ver e não ouvir é duplicado suplício, principalmente para quem depois de fruir as faculdades desses sentidos tiver de suportar essa dupla privação. Qual a causa de sorte tão cruel? Naturalmente não era a sua última existência, sempre moldada numa conduta exemplar. Assim é que sempre foi bom filho, possuidor de caráter meigo e benévolo e, quando por cúmulo de infelicidade, se viu privado da audição, aceitou resignado sem um queixume, esta prova. Pela sua conversação pressentia-se na lucidez do seu Espírito uma inteligência pouco comum. Pessoa que o conhecera, na presunção de que poderia receber instruções úteis, evocou-lhe o Espírito e obteve a seguinte mensagem, em resposta às perguntas que lhe dirigira. (Paris—1863)

"Agradeço, meus amigos, o terdes vos lembrado de mim. Pode ser que isso se não fosse independente da suposição de proveito da minha comunicação, mas, ainda assim, estou certo de que motivos sérios vos animam e eis porque com prazer atendo ao chamado, uma vez que, por feliz, me é permitido orientar-vos. Assim possa o meu exemplo avolumar as provas assaz numerosas que os Espíritos vos dão da justiça de Deus. Cego e surdo me conhecestes e para logo vos propusestes saber a causa desse destino.

Eu vo-lo digo: antes de tudo, importa dizer que era a segunda vez que eu expiava a privação da vista. Na minha precedente existência, em princípios do último século, fiquei cego aos 30 anos, consecutivamente a excessos de todo o gênero que, arruinando-me a saúde, me enfraqueceram o organismo. Note-se que era já isso uma punição por abuso dos dons providenciais de que fora largamente cumulado. Em vez porém, de me atribuir a causa original dessa enfermidade, entrei de acusar a Providência, na qual, aliás, pouco cria.

Anatematizei Deus, reneguei-O, acusei-O, acrescentando que, se acaso existisse, devia ser injusto e mau, por deixar assim penar as criaturas. Entretanto, eu deveria dar-me ainda por feliz, isento como estava de mendigar o pão, à feição de tantos outros míseros cegos como eu. Mas é que eu só pensava em mim, na privação de gozos que me impunham. Influenciado por idéias assim, que o ceticismo mais exaltava, tornei-me nervoso, exigente, numa palavra, insuportável aos que comigo privavam. Além disso, a vida era-me um moto-contínuo, pois que eu não pensava no futuro, uma quimera.

Depois de esgotar embalde os recursos da Ciência e considerada impossível a cura, resolvi antecipar a morte: suicidei-me. Que despertar, então, que foi o meu, imerso nas mesmas trevas da vida! Contudo, não tardou muito o reconhecimento da minha situação, da minha transferência para o mundo espiritual. Era um Espírito, sim, porém cego.

A vida de além-túmulo tornava-se-me, pois, a realidade! Procurei fugir-lhes, mas em vão... Envolvia-me o vácuo. Pelo que ouvia dizer, essa vida deveria ser eterna e com ela a minha situação. Idéia horrenda! Eu não sofria, mas impossível é descrever as angústias e tormentos espirituais experimentados.

Quanto tempo teriam eles durado? Ignoro-o... Mas quão longo me pareceu esse tempo!

Extenuado, fatigado, pude finalmente analisar-me a mim próprio; compreendi o ascendente de um poder superior, que sobre mim aluava e considerei que se essa potência podia oprimir-me, também poderia dar-me alívio. E implorei piedade. À medida que orava e o fervor ia aumentando, alguém me dizia que a minha situação teria um termo. Por fim se fez a luz e extremo foi o meu arroubo de alegria ao entrever as claridades celestes, distinguindo os Espíritos que me rodeavam, sorrindo, benévolos, bem como aqueles que, radiosos, flutuavam no Espaço.

Ao querer seguir-lhes os passos, força invisível me reteve. Foi então que um deles me disse: "O Deus que negaste teve consideração do teu arrependimento e permitiu-nos te déssemos a luz, mas tu só cedeste pelo sofrimento, pelo cansaço. Se queres participar desta felicidade aqui fruída, forçoso é provares a sinceridade do teu arrependimento, as boas disposições, recomeçando a prova terrestre em condições que te predisponham às mesmas faltas, porque esta nova provação deverá ser mais rude que a outra"

Aceitei pressuroso e prometi não mais falir. Assim voltei à Terra nas condições que sabeis. Não me foi difícil compreender a situação, porque eu não era mau por índole; revoltara-me contra Deus e Deus me puniu. Reencarnei trazendo a fé inata, razão porque não murmurei, antes aceitei a dupla enfermidade, resignado, como expiação que era, oriunda da soberana justiça.

O insulamento dos meus derradeiros anos nada tinha de desesperador, porque me bafejava a fé no futuro e a misericórdia de Deus. Demais, esse insulamento me foi proveitoso, pois que durante a longa noite silenciosa a minha alma mais livremente se alçava ao Eterno, entrevendo o infinito pelo pensamento. Quando, por fim, terminou o exílio, o mundo espiritual só me proporcionou esplendores, inefáveis gozos. O retrospecto ao passado faz que me julgue muito feliz, relativamente, pelo que dou graças a Deus; quando, porém, olho para o futuro, vejo a grande distância que ainda me separa da completa felicidade.

Tendo já expiado, ainda me faltava reparar. A última encarnação só a mim aproveitou, pelo que espero recomeçar brevemente por existência que me permita ser útil ao próximo, reparando por esse meio a inutilidade anterior. Só assim me adiantarei na boa senda, sempre franqueada aos Espíritos possuídos de boa vontade.

Amigos, eis aí a minha história; e se o meu exemplo puder esclarecer quaisquer dos meus irmãos encarnados, de modo que evitem a má ação que pratiquei, terei por principiado o resgate da minha dívida."

José.

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