quarta-feira, 1 de agosto de 2007

DIÁLOGOS COM AS SOMBRAS


O VINGADOR

Vingar-se é ir à forra, punir alguém por aquilo que fez ao vingador e, por isso, vingança é uma palavra-chave nos trabalhos de desobsessão e esclarecimento. Aquele que se dedica a essas tarefas, precisa estudá-la a fundo, suas origens, suas motivações, seus mecanismos e as soluções que lhe estão abertas.
É preciso entender o vingador e aceitá-lo como ele se apresenta, se é que pretendemos ajudá-lo, pois ele é, antes de tudo, um pri¬sioneiro de si mesmo, através da sua cólera e da sua frustração. Sua maior ilusão é a de que a vingança aplaca o ódio, quando, na realidade, o alimenta e o mantém vivo. Sua lógica é, ao mesmo tempo, fria e apaixonada, calculada e impulsiva, paciente e violenta, e sempre implacável. Envolvido no seu processo, ele nem sequer admite o perdão, e é capaz de perseguir sua vítima através de séculos e séculos, ao longo de muitas vidas, tanto aqui, na carne, como no mundo espiritual.
Quase sempre a vingança desdobra-se a partir de um caso pes¬soal, mas é comum encontrarmos também o vingador impessoal, aquele que trabalha para uma organização opressora. Ainda ve¬remos isso mais adiante.
O vingador observa, planeja e espera a ocasião oportuna e o momento favorável. Não se precipita, mas não esquece: sempre que pode, interfere, ainda que seja somente para espetar uma agulha em sua vítima indefesa.
Casos tremendos e persistentes de obsessão vingativa resultam de amores frustrados, traidos ou indiferentes. Paixões irrealizadas ou aviltadas despertam os mais profundos sentimentos de revolta. De outras vezes, são crimes horrendos, como assassinatos, espolia¬ções, desonras, difamações, iniqüidades de toda sorte.
O vingador é aquele que tomou em suas mãos os instrumentos da justiça divina. Não confia nela, ignora-a ou não tem paciência de esperar por ela. Não sabe, ainda, que o reajuste virá fatalmente, através da lei de causa e efeito. Todo aquele que fere com a es¬pada, há de ser ferido por ela, segundo nos advertiu o Cristo. É certo, porém, que chegado o momento do resgate, a lei não exige que alguém — seja quem for — tenha que empunhar a espada para ferir o irmão devedor. Pode dar-se muito bem que ele se fira acidentalmente, caindo sobre um instrumento, por exemplo, ou mor¬rendo numa intervenção cirúrgica, em princípio destinada a preser¬var-lhe a vida e, portanto, sem nenhuma intenção de cortar o fio que mantém unidos corpo físico e perispírito.
Em mensagem transmitida a Francisco Cândido Xavier, o “Ir¬mão X” narra um episódio desses, em que uma atrocidade prati¬cada no ano 177, ao tempo de Marco Aurélio, veio a ser cobrada pela lei, na tragédia de 17 de dezembro de 1961, na cidade flumi¬nense de Niterói. As simetrias são perfeitas. Não faltou um só elemento nessa cobrança coletiva e despersonalizada. Aqueles que ajudaram a promover o dantesco episódio de Lyon, há quase de¬zoito séculos, reuniram-se no circo de Niterói. As mesmas corre¬rias, o mesmo atropelo, a mesma passagem estreita por onde alguns escaparam ao inferno. (1)
Tivemos, certa vez, um caso de vingança que muito nos marcou. Alguém nos pedira ajuda espiritual para uma jovem em constante estado de revolta, angústia e desajuste. Colocamos seu nome em nosso caderno de preces e aguardamos. Sem muita demora, duas ou três semanas após, compareceu ao grupo o Espírito indignado de seu perseguidor, e a história desenrolou-se. Fora seu esposo

(1) “Tragédia no Circo”. “Reformador” de março de 1962.

em antiga existência, na Idade Média. Eram gente abastada e pro¬vavelmente da nobreza, pois viviam num castelo. Seu drama é que, segundo ele, todos os dias, através dos séculos decorridos, à mesma hora, ele abre determinada porta, já sabendo o que vai encontrar: a cena inesquecível do flagrante de traição. Matou-a e suicidou-se, segundo os deformados “códigos de honra” daquela época. No en¬tanto, a tragédia, longe de pacificar seu coração ou aplacar seu rancor, ainda mais o exacerbou, porque sofreu horrores, não apenas por causa do assassinato da esposa, como, também, em razão do horrendo crime do suicídio. As dores que se seguiram consolida¬ram seu ódio, e, desde então, ele perseguiu o Espírito da antiga amada. Tanto ele, como ela, tiveram outras vidas, nesse ínterim, e ela estava novamente encarnada. Seu desejo, agora, era o de levá-la ao suicídio (a jovem sofria realmente de impulsos suicidas), para tê-la totalmente sob seu domínio. Ele sabe da sua responsa¬bilidade e está bem consciente de que responderá pelos novos crimes que pratica para vingar-se, mas isso, para ele, não importa; o que interessa no momento — e esse momento dura séculos! — éa vingança em si mesma. Por outro lado, os vingadores sempre se esquecem, ou ignoram, que não há sofrimento sem motivo. No caso, se ele sofreu traição, é porque, por sua vez, já traiu também, no passado. E como poderemos negar indefinidamente o perdão de uma falta cometida contra nós — por mais grave que seja — se também precisamos de que as nossas próprias faltas sejam per¬doadas?
Mas, em situações como essas, há um curioso processo emo¬cional que o doutrinador precisa conhecer e empregar. É o para¬doxo do ódio-amor. O vingador pensa odiar uma criatura que ele ainda ama, a despeito de tudo. Se a odiasse simplesmente, já a teria esquecido e não se manteria preso a ela durante tanto tempo. Parece que lhe restou uma esperança de reconquista, dolorosa, tênue, inconsciente, mas persistente.
No caso sob exame, foi realmente o que os salvou do tene¬broso drama. Lembrei-me de perguntar se não tinham tido fi¬lhos. Realmente tiveram, duas criaturinhas encantadoras, um casal, que ele ternamente dizia que eram dois anjos. Disse-me, ainda, que atrás da porta seguinte, que ele se recusava sempre a transpor, sabia que encontraria os filhos amados. Era preciso, no entanto, manter acesa a chama rubra do ódio que, temia ele acertadamente, não poderia subsistir ao lado da doçura do amor paterno, que o colocaria em uma situação de ternura que ele queria evitar.
Na sessão seguinte, trouxeram-lhe, por desdobramento, o Es¬pírito da ex-esposa. Houve um diálogo emocionado, do qual per¬cebíamos apenas as suas falas. Sente-se vazio e cansado. Não tem mais ânimo, nem para vingar-se.
— Você é um trapo, e eu também — diz a ela. — Somos dois trapos. Vá em paz, que não a perseguirei mais. Que Deus nos abençoe...
E adormeceu.
É extremamente complexo o processo da vingança. De certa forma, a lei universal nos proporciona os elementos para exercê-la, porque, com sua falta contra nós, aquele que nos feriu colocou-se à mercê da reparação, quase sempre dolorosa. E, por isso, o vin¬gador sente-se um instrumento da justiça divina, com todo o di¬reito de exercê-la, esquecido de que está reassumindo um compro¬misso que, em parte, havia resgatado pela própria aflição que pro¬cura punir a seu modo. Por outro lado, ao mesmo tempo em que ele se vinga, o ofensor libera-se pela dor, e acaba, ao longo do tempo, por situar-se fora de seu alcance, enquanto ele, o perse¬guidor, continua preso à sua problemática e, portanto, às suas an¬gústias, com um passivo enorme de faltas ainda por resgatar.
Ao vingar-se, ele reabre o ciclo da culpa e expõe-se, por sua vez, novamente à lei, que se voltará contra ele, alhures no tempo e no espaço.
Se conseguirmos convencer o vingador da lógica férrea desse mecanismo, estaremos em condições de ajudá-lo a libertar-se; caso contrário, ele seguirá escravo da sua própria vingança, de vez que o livre-arbítrio, que lhe faculta a decisão de agir, responde do mesmo modo, pelas conseqüências amargas e inelutáveis que pro¬voca. Não há outras opções: ou ele perdoa e segue à frente, ou insiste em cobrar, e demora-se nas sombras do sofrimento.
Consideramos diferentemente o obsessor e o vingador. Embora tenham muito em comum, nos seus métodos de ação e no que pode¬ríamos chamar de sua filosofia, eles diferem sutilmente: obsessão muitas vezes é vingança, mas a vingança não é, necessariamente, um processo obsessivo. Não sei se me faço entender. O Espírito pode vingar-se longa e profundamente, sem desencadear obsessões à sua vítima, empenhando-se apenas em criar-lhe dificuldades e dores, angústias e frustrações. É que o Espírito, encarnado e desencarnado, que sofre um processo vingativo, está, de certa forma, à mercê de seu algoz, porque ao errar expôs-se ao reajuste; mas, mesmo devendo, perante a lei desrespeitada, poderá estar a salvo da obsessão em si mesma. Assistimos, às vezes, à vingança indireta. Sem poderem, por qualquer razão, atingir a vítima visada, os “co¬bradores” alcançam-na fazendo sofrer aqueles que a cercam e que, por suas falhas pessoais e por suas conexões espirituais com a vítima, são impiedosamente sacrificadas ao ódio.
De um pobre irmão, envolvido em antiquíssima trama vinga¬tiva, alguém ouviu dizer, certa vez:
— Sou o responsável por todas as dores que os teus vêm so¬frendo há muito tempo...
Isto não quer dizer que a vítima indireta seja invulnerável ou inatingível, pela santificação; é que, empenhada em sincero e ho¬nesto processo de recuperação, dedicado à prece, ao serviço ao próximo, à melhora íntima, coloca-se sob a proteção da própria lei divina, que lhe concede um crédito de confiança, pois as culpas são resgatadas também através do amor e não apenas da dor...
Atenção, porém, para um pormenor: isto não significa que sofram os justos pelos devedores, nem os pais pelos filhos, ou a esposa pelo marido. Não há sofrimento inocente na justiça di¬vina. O que acontece, nesses casos, é que o vingador atinge a vítima (que se colocou fora de seu alcance) através daqueles que lhe são caros, mas que também se acham em débito perante a lei, por motivos outros.

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