quarta-feira, 1 de agosto de 2007


ODISSÉIA-CANTO XI

Evocação dos mortos

Apenas chegarmos à nau e ao mar brilhante, antes de mais nada, arrastamo-na para a água e pusemos-lhe o mastro e as velas; embarcamos, depois, as reses, e, por fim, entramos nós, aflitos e derramando copioso pranto. Atrás da nau de escuta proa, Circe, a poderosa deusa de belas tranças e dotada de voz humana, enviou-nos a monção, boa companheira de viagem, que enfunava as velas. E, postos em ordem todos os aparelhos, assentamo-nos pela nau, que o vento e o piloto dirigia. Durante o dia, navegou com as velas desfraldadas; e, quando se pôs o Sol e todos os caminhos iam escurecendo, chegava aos confins do Oceano de profunda corrente.
Ali está situada a terra e a cidade dos Cimérios que a bruma e as nuvens encobrem, sem que jamais o Sol brilhante lhe envie os seus raios, quando sobe ao céu estrelado ou quando baixa de novo à Terra: aí, pois, uma noite de morte estende-se sobre os infelizes mortais. Tendo nós chegado a uma tal região, levamos a nau para terra e tiramos para fora as reses; depois, caminhamos ao longo da corrente do Oceano, até ao ponto que fora indicado por Circe.

Aí, Perimedes e Euríloco seguraram as vítimas para o sacrifício; e eu, tirada a espada de bom fio de junto da coxa, abri um fosso, cujos lados tinham um côvado de largura. Fiz em volta dele três libações a todos os mortos: a primeira com leite e mel, a segunda com vinho doce e a terceira com água; e espalhei, finalmente, por cima farinha branca de cevada.
Implorei, em seguida, muitas vezes, as cabeças lânguidas dos mortos e prometi-lhes, logo que chegasse à Ítaca estéril, sacrificar no meu palácio a melhor vaca e encher a pira de ofertas excelentes em sua honra; e que, imolaria a Tirésias em separado, um carneiro completamente preto, que se distinguisse nos nossos rebanhos. Depois de ter dirigido os meus votos e as minhas preces ao povo dos mortos, tomei as reses e degolei-as em cima do fosso. O sangue negro correu e logo as almas dos defuntos subiram do Érebo e ajuntaram-se. [Vieram mulheres, mancebos, anciãos, que tinham suportado muitos males, delicadas meninas, de ânimo atormentado por penas recentes, e muitos varões que foram mortos na guerra, feridos com lanças de bronze, cujas armaduras estavam manchadas de sangue. Toda esta multidão andava em volta do fosso, uns por um lado, outros por outro, fazendo grande
ido, de sorte que eu empalideci de terror].

Em seguida, mandei aos meus companheiros que esfolassem as reses que jaziam no chão, degoladas pelo bronze cruel, e que as queimassem, fazendo votos aos deuses, ao poderoso Hades e à terrível Perséfona. Mas eu, depois de desembainhar a espada de bom fio de junto da coxa, assentei-me e não permiti que as cabeças lânguidas dos mortos se aproximassem do sangue, antes de ter sido instruído por Tirésias.

A alma que primeiramente veio foi a do companheiro Elpenor, que não tinha ainda sido sepultado na terra de largos caminhos. Nós deixáramos o seu corpo no palácio de Circe por chorar e insepulto, porque outras ocupações urgiam. Ao vê-lo, compadeceu-se o meu coração e, com lágrimas nos olhos, dirigi-lhe estas aladas palavras:
- Elpenor, como vieste parar a estas densas trevas? Tu a pé chegaste primeiro do que eu com a escura nau.

Assim falei; e ele, por entre gemidos, replicou-me:

- [Filho de Laertes, da estirpe de Zeus, Ulisses fecundo em recursos,] a má vontade de um deus e o excesso do vinho causaram a minha desgraça. Tendo-me deitado no terraço do templo da Circe, como não pensasse em voltar atrás, para descer pela escada, caminhei a direito e caí abaixo. Em conseqüência disso, parti as vértebras do pescoço e a minha alma baixou ao Hades. Agora peço-te, pelos ausentes, que te ficaram em casa, por tua esposa, pelo pai, que te alimentou em pequeno, e por Telêmaco, o único filho que deixaste no teu palácio - sei que, partindo daqui, da morada de Hades, deterás a nau consistente na ilha de Eéia - rogo-te por eles, senhor, que te lembres aí
de mim! Não te afastes, deixando o meu corpo por chorar e insepulto, para que não seja causa de que os deuses se indignem contra ti; mas queima-me com as armas que me restam e eleva-me, na praia do mar pardacento, um túmulo que seja memória deste desgraçado, a fim de que os vindouros se lembrem dele. Faz-me isto e põe sobre o túmulo o remo, com que eu em vida remava com os meus companheiros.

Assim falou ele; e eu repliquei-lhe: ó infeliz, eu cumprirei tudo isso; eu farei o que me pedes.

Nós estávamos assentados, a trocar estes tristes discursos; mas eu conservava a espada estendida sobre o sangue, enquanto a alma do companheiro falava, do lado oposto.

Veio, depois, a alma da minha defunta mãe, de Anticleia, filha do
magnânimo Autólico, a qual deixara viva quando parti para a sacra Ílion. Ao vê-la, compadeceu-se o meu coração até às lágrimas; contudo, se bem que muito contristado, não lhe permiti aproximar-se do sangue, antes de ser instruído por Tirésias.

A alma do Tebano veio a seguir com um ceptro de ouro e, reconhecendo-me, disse:

- Filho de Laertes, da estirpe de Zeus, Ulisses fecundo em recursos, porque deixaste, infeliz, a luz do Sol e vieste aqui ver os mortos, a esta desagradável região? Afasta-te do fosso e retira a espada de bom fio, para que eu beba o sangue e te diga a verdade toda.

Assim falou; e eu retirei a espada de cravejamento de prata e meti-a na bainha. O adivinho irrepreensível,
depois que bebeu o sangue negro, dirigiu-me estas palavras:

- Ó preclaro Ulisses, tu esforças-te por conseguir o teu doce regresso; um deus, porém, tornar-to-á difícil. Não creio que passes despercebido ao Sacudidor da terra, cujo coração está em cólera contra ti, por lhe teres cegado o filho. Mas, apesar de reveses, ainda chegaríeis à pátria, se quisesses conter o teu ânimo e o dos companheiros, quando, salvos do mar violáceo, aproximardes, pela primeira vez, a nau resistente da ilha Trinácia e nela encontrardes, pastando, as vacas e as ovelhas gordas do Sol, que tudo vê e tudo escuta. Se as deixardes ilesas e tratardes do regresso, posto que sofrais trabalhos, chegareis a Ítaca; mas se vós lhes fizerdes mal, então anuncio-te a ruína da nave e a dos teus companheiros. E, se bem que te salves, todavia chegarás tarde à terra pátria e depois de uma viagem má e de ter perdido toda a tua equipagem. Irás sobre a nau de outrem e encontrarás aflições na tua casa: homens atrevidos que te consomem a fazenda e pretendem a esposa, semelhante a uma deusa, à qual oferecem presentes. Contudo, quando chegares, vingar-te-ás das violências deles.

Logo que no teu palácio tenhas dado morte aos pretendentes, por astúcia ou cara a cara, põe-te a caminho com um remo de fácil manejo ao ombro, até que te vejas entre uns homens que nunca viram o mar, que não comem os alimentos temperados com sal, nem conhecem as naus de proas vermelhas ou os remos de fácil manejo, que são as asas das naus. Vou dar-te um sinal muito certo que não te passará despercebido. Quando vier ao teu encontro outro viajante e ele te disser que levas uma pá de limpar grão sobre o ombro brilhante, crava na terra o remo de fácil manejo e oferece sacrifícios esplêndidos ao soberano Poseidon - um carneiro, um touro e um javali; em seguida, volta para casa e sacrifica hecatombes sagradas aos deuses imortais, moradores do amplo céu, a cada um por sua ordem. Uma sauvíssima morte surpreender-te-á, depois, longe do mar. Ela apoderar-se-á de ti, quando te sentires cansado de uma velhice opulenta e à tua volta os cidadãos forem felizes. Estas predições cumprir-se-ão.

Assim falou ele; e em resposta disse-lhe: Tirésias, esses vaticínios decretaram-nos, sem dúvida, os próprios deuses. Fala e responde-me com franqueza. Eu vejo a alma de minha defunta mãe, que está assentada em silêncio junto do sangue, sem se atrever a olhar de frente para o seu filho, nem a dirigir-lhe a palavra. Dize, senhor, como poderia ela conhecer quem eu sou?

Assim falei; e o adivinho replicou-me imediatamente.

- Vou dizer-te em poucas palavras; e tu compreendê-lo-ás. Aquele dos mortos, a quem permitires aproximar-se do sangue, dir-lhe-á a verdade; mas ao que recusares, esse retirar-se-á.

Dito isto, a alma do adivinho Tirésias voltou para dentro do Hades, depois de manifestar-me os vaticínios. Eu, porém, permaneci imóvel, no mesmo sítio, até a minha mãe vir beber o sangue negro. Reconheceu-me logo e, por entre suspiros, dirigiu-me estas aladas palavras:

- Meu filho, como vieste em vida a esta densa escuridão? Os vivos dificilmente podem ver estes lugares, [porque os separam grandes rios,medonhas torrentes e sobretudo o Oceano, que ninguém pode atravessar a pé, mas só aquele que possuir uma nau resistente]. Chegaste agora, porventura, de Tróia, depois de andar errante, por muito tempo, com a nau e os teus companheiros? Não foste ainda a Ítaca, nem viste a tua mulher, no palácio?

Assim falou; e eu em resposta disse-lhe: Minha mãe, tive necessidade de descer ao Hades, para consultar a alma do tebano Tirésias. Na verdade, ainda não me aproximei da Acaia nem pus os pés na nossa terra, pois tenho andado sempre errante e a padecer aflições, desde o primeiro momento em que segui ao ilustre Agamémnone para Ílion de belos cavalos, a fim de combater contra os Troianos. Mas fala e responde-me com franqueza: que espécie de morte prostradota te subjugou? Foi uma doença longa ou matou-te a frecheira Ártemis com os seus dardos suaves? Fala-me do pai e do filho que deixei em casa. Dize-me se eles ainda conservam a minha soberania ou se outro homem se apoderou dela, na crença de que eu não volte mais. Revela-me a vontade e o pensamento da minha legítima esposa: se ela continua junto do seu filho, conservando tudo sem mudança, ou se algum nobre Aqueu já a tomou por mulher.

Assim falei; e a minha veneranda mãe respondeu-me:

- Ela continua no teu palácio, de coração paciente; e consome os dias e as noites a chorar de contínuo. Ainda ninguém se apoderou da tua bela realeza. Telêmaco cultiva em paz as propriedades e toma parte em banquetes, com os quais deve interessar-se quem administra justiça; e toda a gente o convida. Teu pai está no campo, sem baixar à cidade.

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