quinta-feira, 9 de agosto de 2007

DANTE - A DIVINA COMEDIA



A Divina Comédia

Dante Alighieri

Lasciate ogni speranza, voi ch'intrate.


O INFERNO

Canto III


1. "Por mim se entra no reino das dores; por mim se chega ao padecer eterno, por mim se vai à condenada gente. Por amor à Justiça, criou-me o Poder que tudo pode, pois que sou obra da Suma Sabedoria e do Amor Supremo. Antes de mim, apenas foram criadas as coisas eternas e, como estas, eu eternamente existo. Deixai aqui todas as esperanças, ó vós que entrais."

10. Estas palavras, em cor escura, vislumbrei escritas por cima de um portal. Exclamei: "Mestre, quão duras são estas palavras!"

13. Ao que, experiente, ele respondeu: "Neste sítio convém deixar toda suspeita, bem como afastar toda tibieza. Pois chegamos, como já eu anunciara, ao lugar onde verás atormentada gente, cujo castigo é a perda da razão."

19. Tomou com sua mão a minha mão, num gesto amigo, e assim introduziu-me ao mundo das secretas penas. Suspiros, choros, gritos altos e desesperados cruzavam aquele firmamento sem estrelas. Ouvindo-os, meu pranto também corria. Diversos idiomas, frases despropositadas, lamentos, vozes roucas, gritos de dor e cólera, mãos a flagelarem o corpo que as sustinha, tudo isso formava turbilhão a girar perenemente naqueles ares conturbados, qual areia por tufão levantada.

31. A mente perturbada por horror tamanho, clamei: "Mestre, que é isto que ouço? Que gente é esta, assim abatida pelo sofrimento?"
34. Tornou-me: "Estas magoadas queixas partem das almas que viveram indiferentes a Deus, sem jamais por amor a ele louvor ou reprimenda terem merecido. De envolta com os seus ais, estão os dos anjos pusilânimes, que ao Senhor não foram nem fiéis nem rebeldes, mas foram leais apenas a si mesmos. Do céu desterrados com desdouro, no Inferno não foram aceitos, para que os anjos rebeldes não possam se vangloriar de em algo serem superiores a estes."

43. Eu quis saber mais: "Que dor tão aguda os acomete, capaz de arrancar tamanhos gritos?"

45. Respondeu: "É simples a explicação. Não lhes sendo permitido esperar pelo descanso da morte, resulta tão desesperado o seu existir nesta desgraça, que passam a invejar qualquer outra condenação. O nome deles no mundo não deixou eco. Do mesmo modo, nem a Justiça nem a Piedade por eles manifestaram interesse. Não percamos tempo com estes; olha-os, e segue."

52. Olhando, percebi bandeira a tremular, celeremente deslizando entre a turba de almas com se condenada a jamais estar quieta. Era seguida por multidão compacta, a ponto de eu não crer tanta gente assim houvesse a morte já eliminado. Pude reconhecer alguns dos vultos, e entre estes, de repente, distingui a sombra daquele que fez a grande renúncia. Com isso, compreendi ser aquela a grei envilecida, sem caráter, desprezada por Deus e pelo Diabo. Aqueles desgraçados, que jamais exerceram a própria vontade, ali estavam, nus, ferreteados sem descanso por vespas e moscardos. Traziam o rosto banhado por sangue e lágrimas, as quais, para os pés lhes escorrendo, alimentavam vermina nauseante.

70. Dirigi então a visita para próximo e largo rio, em cuja margem se adensava forte multidão de almas. Pedi: "Mestre, explica-me de que gente se trata e por que se mostram assim apressados em atravessar o rio, se bem os vejo sob esta duvidosa luz?" Respondeu-o Guia: "Em minúcias tudo direi quando chegarmos à perigosa margem desse rio, o Aqueronte." Tendo os olhos baixos e receando ser importuno, em silêncio caminhei para o rio.

82. Eis quando, um ancião recoberto de cãs aproa a sua barca em nossa direção, gritando: "Ai de vós, almas condenadas! O céu jamais vereis. Por mim levados à treva eterna dessa outra margem, sereis em gelo e fogo perpetuamente mergulhadas. E tu, que vieste para aqui ainda em vida, afasta-te destes que já estão mortos." Percebendo que eu não lhe obedecia, ajuntou: "Seguirás outro caminho até que um porto que não este, onde terás passagem fácil, em barca mais ligeira, para a desejada praia."

94. Disse-lhe o meu Guia: "Caronte, não te obstines contra este. Assim foi determinado lá onde tudo pode Aquele que ordena. Nada mais perguntes." Ouvindo estas palavras, aquietou-se o barqueiro da lívida lagoa, e apagando-se-lhe os olhos antes brilhantes, emudeceu.

100. As almas, porém, nuas e ofegantes, ouvindo tão cruéis palavras, rangem os dentes, descolorindo, de ira, os semblantes feros. Blasfemavam contra Deus, contra seus descendentes, contra a espécie humana, contra o tempo e o lugar de sua origem e contra os pais de que haviam nascido. Todas quantas assim se afligiam em desabrido pranto juntavam-se no lugar medonho, destino certo dos maus a que Deus não temem. Caronte, demônio de esbraseados olhos, a todos convocava e a todos recebia a bordo, fustigando com o remo aos retardatários.

112. Assim como no outono caem as folhas, uma a uma, até que o ramo, despido, devolva à terra o que dela recebera, assim de Adão os descendentes pervertidos, um a um, aproximam-se, acenando-se, como aves respondendo a um chamado. Tão logo cruzam as escuras águas, antes mesmo que do outro lado cheguem, já deste lado uma nova turba espera.

121. "Filho", diz-me gentilmente o Mestre, "de todos os países convergem para aqui os que morreram tendo a Deus irado. Chegam prontos para cruzar o rio e pungidos vêm pela Divina Justiça que o temor do castigo transforma-se em desejo. Por aqui, jamais transita alma de inocente e se Caronte contra tua passagem se opôs, já vês de quanta razão está ele armado."

130. Isto dissera e súbito o escuro descampado tremeu tão fortemente que o suor do medo então sentido, ainda agora por minha fronte escorre. A lacrimosa terra liberou um forte vento sob forma de clarão vermelho. Eu, privado dos sentidos, tombei como homem a quem o sono abate.
http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/divina/index.html

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