quarta-feira, 1 de agosto de 2007

LIBERTAÇÃO



Autor: André Luiz
Médium: Francisco Cândido Xavier

Operações seletivas

Transcorridas longas horas em compartimento escuro, aproveitadas em meditações e preces, sem entendimentos verbais, fomos conduzidos, na noite imediata, a um edifício de grandes e curiosas pro¬porções.
O esquisito palácio guardava a forma de enor¬me hexágono, alongando-se para cima em torres pardacentas, e reunia muitos salões consagrados a estranhos serviços. fluminado externa e interior-mente pela claridade de volumosos tocheiros, apre¬sentava o aspecto desagradável de uma casa incendiada.
Sob a custódia de quatro guardas da residên¬cia de Gregório, que nos comunicaram a necessi• dade de exame antes de qualquer contacto direto com o aludido sacerdote, penetramos o recinto de largas dimensões, no qual se congregavam algu¬mas dezenas de entidades em deploráveis condições.
Moços e velhos, homens e mulheres, aí se mis¬turavam em relativo silêncio.
Alguns gemiam e choravam.
Reparei que a multidão se constituía, em sua quase totalidade, de almas doentes. Muitos pade¬ciam desequilíbrios mentais visíveis.
Observei-lhes, impressionado, o aspecto enfer¬miço.
O perispírito de todos os que aí se enclausura¬vam, pacientes e expectadores, mostrava a mesma opacidade do corpo físico. Os estigmas da velhice, da moléstia e do desencanto, que perseguem a ex¬periência humana, ali triunfavam, perfeitos...
O medo controlava os mais desesperados, por¬que o silêncio caía, abafante, embora a inquietação que transparecia de todos os rostos.
Alguns servidores da casa, em trajes caracte¬risticos, separavam, por grupos vários, as pessoas desencarnadas que entrariam, naquele momento, em seleção para julgamento oportuno.
Discretamente, o Instrutor elucidou-nos:
— Presenciamos uma cerimônia semanal dos juizes implacáveis que vivem sediados aqui. A ope¬ração seletiva realiza-se com base nas irradiações de cada um. Os guardas que vemos em trabalho de escolha, compondo grupos diversos, são técni¬cos especializados na identificação de males nume¬rosos, através das cores que caracterizam o halo dos Espíritos Ignorantes, perversos e desequilibra¬dos. A divisão para facilitar o serviço judiciário é, por isto mesmo, das mais completas.
A essa altura, o pessoal de Gregório nos dera tréguas, afastando-se de nós, de algum modo, não obstante vigiar-nos das galerias repletas de gente.
Respeitado o nosso trio pelos selecionadores que não nos alteraram a união, situávamo-nos, agora, no campo das vítimas.
Atento à explicação ouvida, indaguei, curioso:
— Todas estas entidades vieram constrangi¬das, conforme sucedeu conosco? Há espíritos satâ¬nicos, recordando as oleografias religiosas da Cros¬ta, disputando as almas no leito de morte?
O orientador obtemperou, muito calmo:
— Sim. André, cada mente vive na companhia que elege. Semelhante princípio prevalece para quem respira no corpo denso ou fora dele. É im¬perioso reconhecer, porém, que a maioria das almas asiladas neste sítio vieram ter aqui, obedecendo a forças de atração. Incapazes de perceber a pre¬sença dos benfeitores espirituais que militam entre os homens encarnados, em tarefas de renunciação e benevolência, em vista do baixo teor vibratório em que se precipitaram, através de delitos reiterados, da ociosidade inipenitente ou da deliberada cristalização no erro, não encontraram senão o manto de sombras em que se envolveram e, des¬vairadas, sozinhas, procuraram as criaturas desen¬carnadas que com elas se afinam, agregando-se naturalmente a este imenso cortiço, com toda a bagagem de paixões destruidoras que lhes marcam a estrada.
Aportando aqui, sofrem, porém, a vigi¬lância de inteligências poderosas e endurecidas que Imperam ditatorialmente nestas regiões, onde os frutos amargos da maldade e da indiferença enchem o celeiro dos corações desprevenidos e maliciosos.
— Oh! — exclamei em voz sussurrante — por que motivo confere o Senhor atribuições de julga¬dores a Espíritos despóticos? porque estará a jus¬tiça, nesta cidade estranha, em mãos de príncipes diabólicos?
Gúbio estampou na fisionomia significativa ex¬pressão e ajuntou:
— Quem se atreveria a nomear um anjo de amor para exercer o papel de carrasco? Ao demais, como acontece na Crosta Planetária, cada posição, além da morte, é ocupada por aquele que a deseja e procura.
Vagueei o olhar, em derredor, e confrangeu¬-se-me toda a alma. Na comunidade das vitimas, arrebanhadas aos magotes, como se fôssem animais raros para uma festa, predominavam a humildade e a aflição; mas, entre as sentinelas que nos no¬deavam, a peçonha da ironia transbordava.
Palavrões eram desferidos, desrespeitosamente, a esmo.
A frente de vasta tribuna vazia e sob as ga¬lerias laterais abarrotadas de povo, compacta multidão se amontoava, irreverente.
Alguns minutos decorreram, desagradáveis e pesados, quando absorvente vozento se fêz ouvido:
— Os magistrados! os magistrados! Lugar! lugar para os sacerdotes da justiça!
Procurei a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível, e vi que funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga, carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por ser¬vidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho. Penetraram o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, susten¬tados por dignitários diversos daquela corte brutali¬zada, traziam os juizes, esquisitamente ataviados.
Que solenidade religiosa era aquela? As pol¬tronas suspensas eram, em tudo, idênticas à “sédia gestatória” das cerimônias papalinas.
Varando, agora, o recinto, os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia alarmante facho de luz.
Os julgadores, por sua vez, desceram, pompo¬sos, dos tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima, inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de súbito.
Tambores variados rufaram, como se estivés¬semos numa parada militar em grande estilo, e uma composição musical semi-selvagem acompa¬nhou-lhes o ritmo, torturando-nos a sensibilidade.
Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos:
— “Nem lágrimas, nem lamentos.
Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita.
Esta casa não pune, nem recompensa.
A morte é caminho para a justiça.
Escusado qualquer recurso à compaixão, entre criminosos.
Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim, mordomos do Governo do Mundo.
Nossa função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos.
Quem abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se a receber, de retorno, as forças tremen¬das que desencadeou através da palavra envene¬nada.
Quem abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos.
Quem desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou, espontaneamente.
Quem utilizou as mãos em sementeiras de ma¬lícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação deliberada, organize resistência para a colheita de es¬pinhos.
Quem centralizou os sentidos no abuso de fa¬culdades sagradas espere, doravante, necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras. A represa por longo tem¬po guarda micróbios e monstros, segregados a dis¬tância do curso tranquilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as for¬mas repelentes, libertadas, se espalhem e crescem em toda a extensão da corrente.
Seguidores do vício e do crime, tremei!
Condenados por vós mesmos, conservais a men¬te prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado no visco do pân¬tano, ao qual se habituou no transcurso dos sé¬culos!. .
Nesse ponto, o orador fêz pausa e reparei os circunstantes.
Olhos esgazeados pelo pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.
O juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se inte¬ressado em criar ambiente negativo a qualquer es¬pécie de soerguimento moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor.
Prolongando-se o intervalo, enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou quase em segredo:
— O julgador conhece à saciedade as leis mag¬néticas, nas esferas inferiores, e procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como vemos, a verdade contundente.
— Não vale acusar a edilidade desta colônia — prosseguiu a voz trovejante —, porque ninguém escapará aos resultados das próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o produziu.
Amaldiçoados sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas, aliás, nos arquivos mentais de cada um.
Assinalando, intuitivamente, a queixa mental dos ouvintes, bradou, terrificante:
— Quem nos acusa de crueldade? Não será benfeitor do espírito coletivo o homem que se con¬sagra à vigilância de uma penitenciária? e quem sois vós, senão rebotalho humano? Não viestes, até aqui, conduzidos pelos próprios ídolos que ado¬rastes?
Nesse momento, convulsivo choro invadiu a muitos.
Gritos atormentados, rogativas de compaixão se fizeram ouvir. Muitos se prosternaram de joelhos.
Imensa dor generalizara-se.
Gúbio trazia a destra sobre o peito, como se contivesse o coração, mas, vendo por minha vez aquele grande grupo de espíritos rebelados e hu¬milhados, orgulhosos e vencidos, lastimando amargamente as oportunidades perdidas, recordei meus velhos caminhos de ilusão e — porque não dizer? — ajoelhei-me também, compungido, implorando pie¬dade em silêncio.
Exasperado, o julgador bradou, colérico:
— Perdão? Quando desculpastes sinceramente os companheiros da estrada? onde está o juiz reto que possa exercer, impune, a misericórdia?
E incidindo toda a força magnética que lhe era peculiar, através das mãos, sobre uma pobre mulher que o fixava, estarrecida, ordenou-lhe com voz soturna:
— Venha! venha!
Com expressão de sonâmbula, a infeliz obe¬deceu à ordem, destacando-se da multidão e colocando-se, em baixo, sob os raios positivos da aten¬ção dele.
— Confesse! confesse! — determinou o desa¬piedado julgador, conhecendo a organização frágil e passiva a que se dirigia.
A desventurada senhora bateu no peito, dan¬do-nos a impressão de que rezava o “confiteor” e gritou, lacrimosa:
— Perdoai-me! perdoai-me, ó Deus meu!
E como se estivesse sob a ação de droga mis¬teriosa que a obrigasse a desnudar o íntimo, diante de nós, falou, em voz alta e pausada:
— Matei quatro filhinhos inocentes e ten¬ros... e combinei o assassínio de meu intolerável esposo... O crime, porém, é um monstro vivo. Perseguiu-me, enquanto me demorei no corpo...
Tentei fugir-lhe através de todos os recursos, em vão... e por mais buscasse afogar o infortúnio em “bebidas de prazer”, mais me chafurdei no charco de mim mesma...
De repente, parecendo sofrer a interferência de lembranças menos dignas, clamou:
— Quero vinho! vinho! prazer!...
Em vigorosa demonstração de poder, afirmou, triunfante, o magistrado:
— Como libertar semelhante fera humana ao preço de rogativas e lágrimas?
Em seguida, fixando sobre ela as irradiações que lhe emanavam do temível olhar, asseverou, peremptório:
— A sentença foi lavrada por si mesma! não passa de uma loba, de uma loba...
A medida que repetia a afirmação, qual se procurasse persuadi-la a sentir-se na condição do irracional mencionado, notei que a mulher, pro¬fundamente influenciável, modificava a expressão fisionômica. Entortou-se-lhe a boca, a cerviz cur¬vou-se, espontânea, para a frente, os olhos alteraram-se, dentro das órbitas. Simiesca expressão revestiu-lhe o rosto.
Via-se, patente, naquela exibição de poder, o efeito do hipnotismo sobre o corpo perispirítico.
Em voz baixa, procurei recolher o ensinamento de Gúbio, que me esclareceu num cicio:
— O remorso é uma bênção, sem dúvida, por levar-nos à corrigenda, mas também é uma bre¬cha, através da qual o credor se insinua, cobrando pagamento. A dureza coagula-nos a sensibilidade durante certo tempo; todavia, sempre chega um minuto em que o remorso nos descerra a vida men¬tal aos choques de retorno das nossas próprias emissões.
E acentuando, de modo singular, a voz quase imperceptível, acrescentou:
— Temos aqui a gênese dos fenômenos de li¬cantropia, inextricáveis, ainda, para a investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de Nabuco¬donosor, o rei poderoso, a que se refere a Bíblia? Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu, sentin¬do-se animal, durante sete anos. O hipnotismo étão velho quanto o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-se por base, acima de tudo, os elementos plásticos do peris¬pírito.
Notando, porém, que a mulher infeliz prosse¬guia guardando estranhos caracteres no semblante perguntei:
— Esta irmã infortunada permanecerá dora¬vante em tal aviltamento da forma?
Finda longa pausa, o Instrutor informou, com tristeza:
— Ela não passaria por esta humilhação se não a merecesse. Além disso, se se adaptou às energias positivas do juiz cruel, em cujas mãos veio a cair, pode também esforçar-se intimamente, renovar a vida mental para o bem supremo e afei¬çoar-se à influenciação de benfeitores que nunca escasseiam na senda redentora. Tudo, André, em casos como este, se resume a problema de sintonia. Onde colocamos o pensamento, aí se nos desenvol¬verá a própria vida.
O orientador não conseguiu continuar.
Ao redor de nós, as lamentações se fizeram estridentes.
Interjeições de espanto e dor eram proferidas sem rumo.
O magistrado, que detinha a palavra, deter¬minou silêncio e exprobrou, asperamente, a atitude dos queixosos. Logo após, notificou que os Espí¬ritos Seletores se materializariam, em breves minutos, e que os interessados poderiam solicitar deles as explicações que desejassem.
Concomitantemente, ergueu as mãos em mímica reverencial e, fazendo-nos sentir que presidia ao estranho cenáculo, fêz uma invocação em alta voz, denunciando, nos ges¬tos, a condição de respeitável hierofante, em grande solenidade.
Terminada que foi a alocução, vasto lençol nebuloso, semelhante a uma nuvem móvel, apareceu na tribuna que se mantinha, até então, des¬povoada.
E pouco a pouco, diante de nossos olhos as¬sombrados, três entidades tomaram forma perfeitamente humana, apresentando uma delas, a que no porte guardava maior autoridade hierárquica, pequeno instrumento cristalino nas mãos.
Trajavam túnicas de curiosa e indefinível subs¬tância em amarelo vivo e revestiam-se de halo afogueado, não brilhante. Essa auréola, mais acen¬tuadamente viva em volta da fronte, desferia radia¬ções perturbadoras, que recordavam a esbraseada expressão do ferro incandescido.
Ambos os acólitos da personalidade central do trio tomaram folhas de apontamento num cofre vizinho e, ladeando-a, desceram até nós, em si¬lencio.
Inesperada quietação tomou a turba, dantes agitada.
Ainda não sei de que recôndita organização provinham tais funcionários espirituais; no entan¬to, reparei que o chefe da expedição tríplice mos¬trava infinita melancolia na tela fisionômica.
Alçou ele o instrumento cristalino, à frente do primeiro grupo, formado de catorze homens e mulheres de vários tipos. Efetuou observações que não pude acompanhar e disse algo aos companhei¬ros que se dispuseram à anotação imediata. Antes, porém, que se retirasse, dois membros do conjunto avançaram implorando socorro:
— Justiça! justiça! — suplicou o primeiro — estou punido sem culpa... Fui homem de pensamento e de letras, entre as criaturas encarnadas... Porque deverei suportar a companhia dos ava¬rentos?
Fitando o seletor, angustiadamente, reclamou:
— Se escolheis com eqüidade, livrai-me do la¬birinto em que me vejo!
Não terminara, e o segundo interferiu, ajun¬tando:
— Magistrado venerável, por quem sois!... não pertenço à classe dos sovinas. Imantaram-me a seres sórdidos e desprezíveis! Minha vida trans¬correu entre livros, não entre moedas.. - A Ciência fascinou-me, os estudos eram meu tema predi¬leto... Pode, assim, o intelectual equiparar-se ao usurário?
O dirigente da seleção mostrou reservada pie¬dade no semblante calmo e elucidou, firme:
— Clamais debalde, porque desagradável vi¬bração de egoísmo cristalizante vos caracteriza a todos. Que fizestes do tesouro cultural recebido? Vosso “tom vibratório” demonstra avareza sarcástica. O homem que ajunta letras e livros, teorias e valores científicos, sem distribuí-los a benefício dos outros, é irmão infortunado daquele que amon¬toa moedas e apólices, títulos e objetos preciosos, sem ajudar a ninguém. O mesmo prato lhes serve na balança da vida.
— Por amor de Deus! — suplicou um dos cir¬cunstantes, comovedoramente.
— Esta casa é de justiça, em nome do Governo do Mundo! — afiançou o explicador sem alterar-se.
E impassível, embora visivelmente amargura¬do, pôs-se em marcha.
Auscultava uma formação de oito pessoas; todavia, enquanto se comunicava com os assessores, acerca das observações recolhidas, um cava¬lheiro de faces macilentas salientóu-se e exclamou, estadeando enorme fúria:
— Que ocorre neste recinto misterioso? estou entre caluniadores confessos, quando desempenhei o papel de homem honrado... Criei numerosa fa¬mília, nunca trai as obrigações sociais, fui cor¬reto e digno e, não obstante aposentado desde cedo, cumpri todos os deveres que o mundo me assi¬nalou...
Com acento colérico, aduzia, aflito:
— Quem me acusa?... quem me acusa?...
O selecionador elucidou, sereno:
— A condenação transparece de vós mesmo. Caluniastes vosso próprio corpo, inventando para ele impedimentos e enfermidades que só existiam em vossa imaginação, interessada na fuga ao tra¬balho benéfico e salvador. Debitastes aos órgãos robustos deficiências e moléstias deploráveis, tão somente no propósito de conquistardes repouso prematuro. Conseguistes quanto pretendi eis.
Empe¬nhastes amigos, subornastes consciências delituosas e obtivestes o descanso remunerado, durante qua¬renta anos de experiência terrestre em que outra ação não desenvolvestes senão dormir e conversar sem proveito. Agora, é razoável que o vosso círculo vital se identifique ao de quantos se mergulharam no pântano da calúnia criminosa.
O infeliz não teve forças para a tréplica. Sub¬meteu-se, em lágrimas, à argumentação ouvida e retomou o lugar que lhe competia.
Alcançando o terceiro grupo, constituído de mulheres diversas, mal havia aplicado o singular instrumento ao campo vibratório que lhes dizia respeito, foi o mensageiro abordado por uma senhora, pavorosamente desfigurada, que lhe lançou em rosto atrozes queixas.
— Porque tamanha humilhação? — inquiriu em pranto copioso — fui dona de uma casa que me encheu de trabalho, voltei para cá rodeada de especiais considerações, naturalmente devidas ao meu estado social e arrebanham-me entre mulheres sem pudor? que autoridades são estas que impõem a mim, dama de nobre procedência, o convívio de meretrizes?
Forte crise de soluços embargou-lhe a voz.
O selecionador, no entanto, dentro de uma calma que mais se avizinhava da frieza, declarou sem rebuços:
— Estamos numa esfera onde o equívoco se faz mais difícil. Consultai a própria consciência.
Teríeis sido, realmente, a padroeira de um lar respeitável, como julgais? O teor vibratório asse¬vera que as vossas energias santificantes de mu¬lher, em maior parte, foram desprezadas.
Vossos arquivos mentais se reportam a desregramentos emotivos em cuja extinção gastareis longo tempo. Ao que parece, o altar doméstico não foi bem o vosso lugar.
A senhora gritou, gesticulou, protestou, mas os selecionadores prosseguiram na tarefa a que se impunham.
Ao nosso lado, aplicou o instrumento, em que se salientavam pequeninos espelhos e falou para os auxiliares, definindo-nos a posição:
— Entidades neutras.
Fixou-nos com penetrante fulguração de olhar, como se nos surpreendesse, mudo, as intenções mais profundas e passou adiante.
Instado por mim, Gúbio esclareceu:
— Não fomos acusados. Ser-nos-á possível o engajamento no serviço desejado.
— Que aparelho vem a ser esse? — indagou Elói, antecipando-me a curiosidade.
O orientador não se fêz rogado e elucidou:
— Trata-se de um captador de ondas men¬tais. A seleção individual exigiria longas horas. As autoridades que dominam nestas regiões pre¬ferem a apreciação em grupo, o que se faz pos¬sível pelas cores e vibrações do círculo vital que nos rodeia a cada um.
— Porque nos considerou neutros? — inter¬roguei por minha vez.
— O instrumento não é suscetível de marcar a posição das mentes que já se transferiram para
a nossa esfera. É recurso para a identificação de perispíritos desequilibrados e não atinge a zona
superior.
— Mas — perguntei, ainda —, porque se fala nesta casa em nome do Governo do Mundo?
O Instrutor endereçou-me expressivo gesto e ajuntou:
— André, não te esqueças de que nos encon¬tramos num plano de matéria algum tanto densa e não nos círculos de gloriosa santidade. Não olvides a palavra “evolução” e recorda que os maiores crimes das civilizações terrestres foram cometidos em nome da Divindade. Quanta vez, no corpo físico, notamos sentenças cruéis, emitidas por espíritos ignorantes, em nome de Deus?
Pouco a pouco, a cerimônia terminou com a mesma imponência de culto externo em que se havia iniciado e, sob a vigilância das sentinelas, tornamos ao ponto de origem, guardando inesperadas meditações e profundos pensamentos.

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