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quarta-feira, 1 de agosto de 2007
LIBERTAÇÃO
AUTOR: ANDRÉ LUIZ
MÉDIUM:FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Numa cidade estranha
No dia imediato, pusemo-nos em marcha.
Respondendo-nos às argüições afetuosas, o Ins¬trutor informou-nos de que teríamos apenas alguns dias de ausência.
Além dos serviços referentes ao encargo par¬ticular que nos mobilizava, entraríamos em algumas atividades secundárias de auxílio. Técnico em missões dessa natureza, afirmou que nos admitira, num trabalho que ele poderia desenvolver sôzinho, não só pela confiança que em nós depositava, mas também pela necessidade da formação de novos cooperadores, especializados no ministério de so¬corro às trevas.
Após a travessia de várias regiões, “em des¬cida”, com escalas por diversos postos e instituições socorristas, penetramos vasto domínio de sombras.
A claridade solar jazia diferençada.
Fumo cinzento cobria o céu em toda a sua extensão.
A volitação fácil se fizera impossível.
A vegetação exibia aspecto sinistro e angus¬tiado. As árvores não se vestiam de folhagem farta e os galhos, quase secos, davam a ideia de braços erguidos em súplicas dolorosas.
Aves agoureiras, de grande tamanho, de uma espécie que poderá ser situada entre os corvideos. crocitavam em surdina, semelhando-Se a pequenos monstros alados espiando presas ocultas.
O que mais contristava, porém, não era o qua¬dro desolador, mais ou menos semelhante a outros de meu conhecimento, e, sim, os apelos cortantes que provinham dos charcos. Gemidos tipicamente humanos eram pronunciados em todos os tons.
Acredito, teríamos examinado individualmente os sofredores que aí se localizavam, se nos entre¬gássemos a detida apreciação; todavia, Gúbio, àmaneira de outros instrutores, não se detinha para atender a curiosidade improfícua.
Lembrando a “selva escura” a que Alighieri se reporta no imortal poema, eu trazia o coração premido de interrogativas inquietantes.
Aquelas árvores estranhas, de frondes resse¬cadas, mas vivas, seriam almas convertidas em silenciosas sentinelas de dor, qual a mulher de Lot, transformada simbôlicamente em estátua de sal?
E aquelas grandes corujas diferentes, cujos olhos brilhavam desagradàvelmente nas sombras, seriam homens desencarnados sob tremendo castigo da forma? Quem chorava nos vales extensos de lama? criaturas que houvessem vivido na Terra que re¬cordávamos, ou duendes desconhecidos para nós?
De quando em quando, grupos hostis de enti¬dades espirituais em desequilíbrio nos defrontavam, seguindo adiante, indiferentes, incapazes de registrar-nos a presença. Falavam em alta voz, em português degradado, mas inteligível, evidenciando, pelas gargalhadas, deploráveis condições de igno¬rância. Apresentavam-se em trajes bisonhos e con¬duziam apetrechos de lutar e ferir.
Avançamos mais profundamente, mas o am¬biente passou a sufocar-nos. Repousamos, de algum modo, vencidos de fadiga singular, e Gúbio, depois de alguns momentos, nos esclareceu:
— Nossas organizações perispiríticas, à ma¬neira de escafandro estruturado em material absor¬vente, por ato deliberado de nossa vontade, não devem reagir contra as baixas vibrações deste plano. Estamos na posição de homens que, por amor, descessem a operar num imenso lago de lodo; para socorrer eficientemente os que se adap¬taram a ele, são compelidos a cobrir-se com as substâncias do charco, sofrendo-lhes, com paciência e coragem, a influenciação deprimente.
Atraves¬samos importantes limites vibratórios e cabe-nos entregar a forma exterior ao meio que nos recebe, a fim de sermos realmente úteis aos que nos pro¬pomos auxiliar. Finda a nossa transformação tran¬sitória, seremos vistos por qualquer dos habitan¬tes desta região menos feliz. A oração, de agora em diante, deve ser nosso único fio de comunicação com o Alto, até que eu possa verificar, quando na Crosta, qual o minuto mais adequado de nosso retorno aos dons luminescentes. Não estamos em cavernas infernais, mas atingimos grande império de inteligências perversas e atrasadas, anexo aos círculos da Crosta, onde os homens terrestres lhes sofrem permanente influenciação. Chegou para nós o momento de pequeno testemunho. Muita capa¬cidade de renúncia é indispensável, a fim de alcan¬çarmos nossos fins. Podemos perder por falta de paciência ou por escassez de vocação para o sacri¬fício. Para a malta de irmãos retardados que nos envolverá, seremos simples desencarnados, ignoran¬tes do próprio destino.
Passamos a inalar as substâncias espessas que pairavam em derredor, como se o ar fosse consti¬tuído de fluidos viscosos.
Elói estirou-se, ofegante, e não obstante expe¬rimentar, por minha vez, asfixiante opressão, busquei padronizar atitudes pela conduta do Instrutor, que tolerava a metamorfose, silencioso e palidís¬simo.
Reparei, confundido, que a voluntária integra¬ção com os elementos inferiores do plano nos des¬figurava enormemente. Pouco a pouco, sentimo-nos pesados e tive a ideia de que fora, de improviso, religado, de novo, ao corpo de carne, porque, em¬bora me sentisse dono da própria individualidade, me via revestido de matéria densa, como se fôsse obrigado a envergar inesperada armadura.
Decorridos longos minutos, o orientador ape¬lou, diligente:
— Prossigamos! Doravante, seremos auxilia¬res anônimos. Não nos convém, por enquanto, a identificação pessoal.
— Mas, não será isto mentir? clamou Elói, quase refeito.
Gúbio dividiu conosco um olhar de benevo¬lência e explicou, bondoso:
— Não te recordas do texto evangélico que recomenda não saiba a mão esquerda o que dá a direita? Este é o momento de ajudarmos sem alar¬de. O Senhor não é mentiroso quando nos estende invisíveis recursos de salvação, sem que lhe veja¬mos a presença. Nesta cidade sombria, trabalham inúmeros companheiros do bem nas condições em que nos achamos. Se erguermos bandeira provo¬cante, nestes campos, nos quais noventa e cinco por cento das inteligências se encontram devotadas ao mal e à desarmonia, nosso programa será es¬traçalhado em alguns instantes. Centenas de mi¬lhares de criaturas aqui padecem amargos choques de retorno à realidade, sob a vigilância de tribos cruéis, formadas de espíritos egoístas, invejosos e brutalizados Para a sensibilidade medianamente desenvolvida, o sofrimento aqui é inapreciável.
— E ha governo estabelecido num reino estra¬nho e sinistro quanto este? — indaguei.
— Como não? — respondeu Gúbio, atenciosamente. — Qual ocorre na esfera carnal, a direção, neste domínio, é concedida pelos Poderes Superio¬res, a título precário. Na atualidade, este grande empório de padecimentos regeneratívos permanece dirigido por um sátrapa de inqualificável impie¬dade, que aliciou para si próprio o pomposo título de Grande Juiz, assistido por assessores políticos e religiosos tão frios e perversos quanto ele mesmo. Grande aristocracia de gênios implacáveis aqui se alinha, senhoreando milhares de mentes preguiçosas, delinqüentes e enfermiças...
— E porque permite Deus semelhante absurdo?
Dessa vez, era o meu colega que perguntava, de novo, semi-apavorado, agora, ante os compro¬missos que assumíramos.
Longe de perturbar-se, Gúbio replicou:
— Pelas mesmas razões educativas através das quais não aniquila uma nação humana quando, des¬vairada pela sede de dominação, desencadeia guer¬ras cruentas e destruidoras, mas a entrega à ex¬piação dos próprios crimes e ao infortúnio de si mesma, para que aprenda a integrar-se na ordem eterna que preside à vida universal. De período a período, contado cada um por vários séculos, a matéria utilizada por semelhantes inteligências é revolvida e reestruturada, qual acontece nos cír¬culos terrenos; mas se o Senhor visita os homens pelos homens que se santificam, corrige igualmente as criaturas por intermédio das criaturas que se endurecem ou bestializam.
— Significa então que os gênios malditos, os demônios de todos os tempos... — exclamei, reti¬cencioso...
— Somos nós mesmos — completou o Instru¬tor, paciente — quando nos desviamos, impeniten¬tes, da Lei. Já perambulamos por estes sítios som¬brios e inquietantes, mas os choques biológicos do renascimento e da desencarnação, mais ou menos recentes, não te permitem, nem a Elói, o desa¬brocho de reminiscências completas do passado. Comigo, porém, a situação é diversa.
A extensão de meu tempo, na vida livre, já me confere recor¬dações mais dilatadas e, de antemão, conheço as lições que constituam novidade. Muitos de nossos companheiros, guindados à altura, não mais identificam nestas paragens senão motivos de cansaço, repugnância e pavor; todavia, é forçoso observar que o pântano, invariàvelmente, é uma zona da natureza pedindo o socorro dos servos mais fortes e generosos.
Música exótica fazia-se ouvir não distante e Gúbio rogou-nos prudência e humildade em favor do êxito no trabalho a desdobrar-se.
Reerguemo-nos e avançamos.
Fizera-se-nos tardio o passo e nossa movi¬mentação difícil.
Em voz baixa, o orientador reiterou a reco¬mendação:
— Em qualquer constrangimento íntimo, não nos esqueçamos da prece. É, de ora em diante, o único recurso de que dispomos a fim de mobilizar nossas reservas mentais superiores, em nossas ne¬cessidades de reabastecimento psíquico. Qualquer precipitação pode arrojar-nos a estados primitivis¬tas, lançando-nos em nivel inferior, análogo ao dos espíritos infelizes que desejamos auxiliar. Tenha¬mos calma e energia, doçura e resistência, de ânimo voltado para o Cristo.
Lembremo-nos de que acei¬tamos o encargo desta hora, não para justiçar e sim para educar e servir.
Adiantamo-nos, caminho a fora, como se fazia possível.
Em minutos breves, penetramos vastissima aglomeração de vielas, reunindo casario decadente e sórdido.
Rostos horrendos contemplavam-nos furtiva¬mente, a princípio, mas, à medida que varávamos o terreno, éramos observados, com atitude agres¬siva, por transeuntes de miserável aspecto.
Alguns quilômetros de via pública, repletos de quadros deploráveis, desfilaram a nossos olhos.
Mutilados às centenas, aleijados de todos os matizes, entidades visceralmente desequilibradas, ofereciam-nos paisagens de arrepiar.
Impressionado com a multidão de criaturas de¬formadas que se enfileiravam sob nosso raio visual, perfeitamente arrebanhadas ali em experiência co¬letiva, enderecei algumas interrogações ao Instru¬tor, em tom discreto.
Porque tão extensa comunidade de sofredores? Que causas impunham tão flagrante decadência da forma?
Paciente, o orientador não se fêz demorado na resposta.
— Milhões de pessoas — informou, calmo —, depois da morte, encontram perigosos inimigos no medo e na vergonha de si mesmas. Nada se perde, André, no círculo de nossas ações, palavras e pen¬samentos. O registro de nossa vida opera-se em duas fases distintas, perseverando no exterior, atra¬vés dos efeitos de nossa atuação em criaturas, si¬tuações e coisas, e persistindo em nós mesmos, nos arquivos da própria consciência, que recolhe mate¬màticamente todos os resultados de nosso esforço, no bem ou no mal, ao interior dela própria, O espírito, em qualquer parte, move-se no centro das criações que desenvolveu. Defeitos escuros e qua¬lidades louváveis envolvem-no, onde se encontre. A criatura na Terra, por onde peregrinamos, ouve argumentos alusivos ao Céu e ao Inferno e acre¬dita vagamente na vida espiritual que a espera, além-túmulo.
Mais cedo que possa imaginar, perde o veículo de carne e compreende que não se pode ocultar por mais tempo, desfeita a máscara do corpo sob a qual se escondia à maneira da tarta¬ruga dentro da carapaça. Sente-se tal qual é e receia a presença dos filhos da luz, cujos dons de penetração lhe identificariam, de pronto, as mazelas indesejáveis. O perispírito, para a mente, é uma cápsula mais delicada, mais suscetível de refletir-lhe a glória ou a viciação, em virtude dos tecidos rarefeitos de que se constitui. Em razão disso, as almas decaídas, num impulso de revolta contra os deveres que nos competem a cada um, nos ser¬viços de sublimação, aliam-se umas às outras atra¬vés de organizações em que exteriorizam, tanto quanto possível, os lamentáveis pendores que lhes são peculiares, não obstante ferretoadas pelo agui¬lhão das inteligências vigorosas e cruéis.
— Mas — interferi — não há recurSos de soerguer semelhantes comunidades?
— A mesma lei de esforço próprio funciona igualmente aqui. Não faltam apelos santificantes de Cima; contudo, com a ausência da íntima adesão dos interessados ao ideal da melhoria própria, é impraticável qualquer iniciativa legítima, em ma¬téria de reajustamento geral. Sem que o espírito, senhor da razão e dos valores eternos que lhe são consequentes, delibere mobilizar o patrimônio que lhe é próprio, no sentido de elevar o seu campo vibratório, não é justo seja arrebatado, por impo¬sição, a regiões superiores que ele mesmo, por enquanto, não sabe desejar. E até que resolva atirar-se ao empreendimento da própria ascenSãO, vai sendo aproveitado pelas leis universais no que possa ser útil à Obra Divina. A minhoca, enquanto é minhoca, é compelida a trabalhar o solo; o peixe, enquanto é peixe, não viverá fora d’água...
Sorrindo, ante a própria argumentação, con¬cluiu bem humorado:
— É natural, pois, que o homem, dono de vastaS teorias de virtude salvadora, enquanto se demora no comboio da inferioridade seja empre¬gado em atividades inferiores. A Lei estima infi¬nitamente a Lógica.
Calou-se Gübio, evidentemente constrangido pe¬la necessidade de não acordarmoS demasiada aten¬ção em torno de nós.
Tocado, no entanto, pela miséria que ali emol¬durava tanta dor, perdi-me num mar de indagações íntimas.
Que empório extravagante era aquele? algum país onde vicejassem tipos sub-humanos? Eu sabia que semelhantes criaturas não envergavam corpos carnais e que se congregavam num reino purgatorial, em beneficio próprio; entretanto, vestiam-Se de roupagens de matéria francamente imunda. Lom¬broso e Freud encontrariam aí extenso material de observação. Incontáveis tipos que interessariam, de perto, à criminologia e à psicanálise. Vagueavam absortos, sem rumo. Exemplares inúmeros de pig¬meus, cuja natureza em si ainda não posso precisar, passavam por nós, aos magotes. Plantas exóticas, desagradáveis ao nosso olhar, ali proliferam, e ani¬mais em cópia abundante, embora monstruosos, se movimentavam a esmo, dando-me a ideia de seres acabrunhados que pesada mão transformara em duendes. Becos e despenhadeiros escuros se multiplicavam em derredor, acentuando-nos o angus¬tioso assombro.
Após a travessia de vastíssima área, não sopi¬tei as interrogações que me escapavam do cérebro.
O Instrutor, todavia, esclareceu, discreto:
— Guarda as perguntas intempestivas no mo¬mento. Estamos numa colônia purgatorial de vasta expressão. Quem não cumpre aqui dolorosa peni¬tência regenerativa, pode ser considerado inteligên¬cia sub-humana. Milhares de criaturas, utilizadas nos serviços mais rudes da natureza, movimen¬tam-se nestes sítios em posição infraterrestre. A ignorância, por ora, não lhes confere a glória da responsabilidade. Em desenvolvimento de tendên¬cias dignas, candidatam-se à humanidade que co¬nhecemos na Crosta. Situam-se entre o raciocínio fragmentário do macacóide e a idéia simples do homem primitivo na floresta. Afeiçoam-se a per¬sonalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos espíritos prepotentes que dominam em paisa¬gens como esta. Guardam, enfim, a ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão. O contacto com certos indivíduos inclina-os ao bem ou ao mal e somos responsabilizados pelas Forças Superiores que nos governam, quanto ao tipo de influência que exercermos sobre a mente infantil de seme¬lhantes criaturas. Com respeito aos Espíritos que se mostram nestas ruas Sinistras, exibindo formas quase animalescas, neles reparamos várias demons¬trações da anormalidade a que somos conduzidos pela desarmonia interna. Nossa atividade mental nos marca o perispírito. Podemos reconhecer a propriedade do asserto, quando ainda no mundo. O glutão começa a adquirir aspecto deprimente no corpo em que habita. Os viciados no abuso do álcool passam a viver de borco, arrojados ao solo, à maneira de grandes vermes. A mulher que se habituou a mercadejar com o vaso físico, olvi¬dando as sagradas finalidades da vida, apresenta máscara triste, sem sair da carne. Aqui, porém, André, o fogo devorador das paixões aviltantes revela suas vítimas com mais hedionda crueldade.
Certo, porque eu refletisse no problema de assistência, o orientador aduziu:
— É impraticável a enfermagem individual e sistemática numa cidade em que se amontoam mi¬lhares de alienados e doentes. Um médico do mundo surpreenderia aqui, às centenas, casos de amnésia, de psicastenia, de loucura, através de neuroses complexas, alcançando a conclusão de que toda a patogenia permanece radicada aos ascendentes de ordem mental. Quem cura nestes lugares há de ser o tempo com a piedade celeste ou a piedade celeste por intermédio de embaixadores da renún¬cia, em serviços de intercessão para os espíritos arrependidos que se refugiem na obediência aos imperativos da Lei, inspirados pela boa vontade.
Alguns transeuntes repulsivos ombrearam co¬nosco e Gúbio considerou prudente silenciar.
Notei a existência de algumas organizações de serviços que nos pareceriam, na esfera carnal, in¬gênuas e infantis, reconhecendo que a ociosidade era, ali, a nota dominante. E porque não visse crianças, exceção feita das raças de anões, cuja existência percebia sem distinguir os pais dos filhos, arrisquei, de novo, uma indagação, em voz baixa.
Respondeu o Instrutor, atencioso:
— Para os homens da Terra, prôpriamente considerados, este plano é quase infernal. Se a compaixão humana separa as crianças dos crimi¬nosos definidos, que dizer do carinho com que a compaixão celestial vela pelos infantes?
— E porque em geral tanta ociosidade neste plano? — indaguei ainda.
— Quase todas as almas humanas, situadas nestas furnas, sugam as energias dos encarnados e lhes vampirizam a vida, qual se fôssem lampreias insaciáveis no oceano do oxigênio terrestre. Suspiram pelo retorno ao corpo físico, de vez que não aperfeiçoaram a mente para a ascensão, e perse¬guem as emoções do campo carnal com o desvario dos sedentos no deserto. Quais fetos adiantados absorvendo as energias do seio materno, consomem altas reservas de força dos seres encarnados que as acalentam, desprevenidos de conhecimento su¬perior. Daí, esse desespero com que defendem no mundo os poderes da inércia e essa aversão com que interpretam qualquer progresso espiritual ou qualquer avanço do homem na montanha de santi¬ficação. No fundo, as bases econômicas de toda essa gente residem, ainda, na esfera dos homens comuns e, por isto, preservam, apaixonadamente, o sistema de furto psíquico, dentro do qual se sustentam, junto às comunidades da Terra.
A essa altura, defrontamos acidentes no solo, que o Instrutor nos levou a atravessar.
Subimos, dificilmente, a rua íngreme e, em pequeno planalto, que se nos descortinou aos olhos espantadiços, a paisagem alterou-se.
Palácios estranhos surgiam imponentes, reves¬tidos de claridade abraseada, semelhante à auréola do aço incandescente.
Praças bem cuidadas, cheias de povo, osten¬tavam carros soberbos, puxados por escravos e animais.
O aspecto devia, a nosso ver, identificar-se com o das grandes cidades do Oriente, de duzentos anos atrás.
Liteiras e carruagens transportavam persona¬lidades humanas, trajadas de modo surpreendente, em que o escarlate exercia domínio, acentuando a dureza dos rostos que emergiam dos singulares indumentos.
Respeitável edifício destacava-se diante de uma fortaleza, com todos os característicos de um tem¬plo, e o orientador confirmou-me as impressões, asseverando que a casa se destinava a espetaculoso culto externo.
Enquanto nos movimentávamos, admirando o suntuoso casario em contraste chocante com o vas¬to reino de miséria que atravessáramos, alguém nos interpelou, descortês:
— Que fazem?
Era um homem alto, de nariz adunco e olhos felinos, com todas as maneiras do policial desrespeitoso, a identificar-nos.
— Procuramos o sacerdote Gregório, a quem estamos recomendados — esclareceu Gúbio, hu¬milde.
O estranho pôs-se à frente, determinou lhe acompanhássemos as passadas, em silêncio, e guiou-nos a um casarão de feio aspecto.
— É aqui! — disse em tom seco e, após apre¬sentar-nos a um homem maduro, envolvido em lon¬ga e complicada túnica, retirou-se.
Gregório não nos recebeu hospitaleiramente. Fitou em Gúbio os olhos desconfiados de fera sur¬preendida e interrogou:
— Vieram da Crosta, há muito tempo?
— Sim — respondeu nosso Instrutor —, e te¬mos necessidade de auxilio.
— Já foram examinados?
— Não.
— E quem os enviou? — inquiriu o sacer¬dote, sob visível perturbação.
— Certa mensageira de nome Matilde.
O anfitrião estremeceu, mas observou, impla¬cável:
— Não sei quem seja. Todavia, podem entrar. Tenho serviços nos mistérios e não posso ouvi-los agora. Amanhã, porém, ao anoitecer, serão leva¬dos aos setores de seleção, antes de admitidos ao meu serviço.
Nem mais uma palavra.
Entregues a um servidor de fisionomia desa¬gradável, demandamos porão escuro, e confesso que acompanhei Gúbio e Elói, de alma conturbada por receio absorvente e indefinível.
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