
Por Dora
Incontri
08/06/psicologia-da-
Todas as vezes que testemunho ou sofro alguma ingratidão, lembro-me
da passagem do Evangelho – aquela em que Jesus curou os dez leprosos e só um
voltou para agradecer. E ele perguntou: onde estão os outros nove? Essa
história nos indica que a ingratidão é algo comum, majoritário, no
comportamento humano. Estatisticamente, 90% daqueles que Jesus curou, não
mostraram gratidão.
Observando esse fenômeno, proponho-me aqui a examinar as motivações
psicológicas da ingratidão.
Quando alguém está precisando de ajuda – seja porque está doente, com
dificuldades financeiras, solitário, deprimido, em qualquer situação de
crise ou mesmo que essa crise seja um status permanente, desde a infância –
é um momento, uma fase, ou até uma existência inteira, até então, de
fragilidade e de carência. Para o orgulho humano, precisar do outro, tem
algo de humilhante – ainda que aquele que ajude (como o caso incontestável
de Jesus) esteja ajudando com total desprendimento e sem nenhum desejo de
recompensa. Obviamente que este estado de desprendimento e desapego dos
resultados é algo bastante raro no mundo, tão raro quanto a
gratidão.
Ora, quando a pessoa que recebeu a ajuda, seja em forma de dinheiro,
apoio, solidariedade, incentivo, colo… – se vê numa situação melhor, de
maior segurança, de retomada de sua autonomia, até de euforia, porque
conquistou posições e patamares antes impensáveis (muitas vezes com o
próprio esforço sim, mas a partir da ajuda recebida) – então, a pessoa não
quer mais se lembrar daquele instante de fragilidade, quer negar para si
mesma que precisou um dia de apoio, quer atribuir todas as suas conquistas
apenas a si mesma, aos próprios méritos. Não quer dividir o sabor da
vitória, relembrando um momento em que estava “por baixo”. Então, nega o
benfeitor, esquece-o, até pode agredi-lo e eliminá-lo simbolicamente, porque
é humilhante para o seu status atual, fazer referências a um estado anterior
de carência. Então, faz aquilo que o ditado popular tão pitorescamente
expressa: “cospe no prato que comeu”.
A coisa se agrava mais quando existe uma forte relação afetiva entre
aquele que ajudou e aquele que foi ajudado – seja este um filho, um irmão,
um amigo íntimo, um parente distante ou próximo. Porque então, a ajuda pode
ter sido carregada de forte dose de afetividade, preocupação com o outro,
desejo profundo de felicidade e superação das dificuldades do ser amado.
Nesse caso, o ingrato precisa esquecer duplamente do benfeitor – o benefício
prestado e a afetividade entregue. E é então que a ingratidão pode doer mais
profundamente, porque se tratou não apenas de um benefício, mas de uma
entrega de si. Episódios assim também se encontram na vida de Jesus, como a
traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos mais próximos, no
momento da crucificação. No caso dos leprosos, Jesus não tinha uma
intimidade com eles. Com os discípulos, eram amigos queridos. Nessa
configuração, a pessoa não quer apenas esquecer do benfeitor, para não
lembrar de um momento de fragilidade, ela quer se desobrigar de qualquer
retribuição concreta ou afetiva com a pessoa que foi determinante para suas
realizações, superações e conquistas – sejam elas de ordem material,
intelectual ou moral. Quer se sentir livre de compromissos com quem ficou
para trás, porque tais compromissos, que implicariam muito mais do que
simplesmente reconhecer o benefício, mas também num cuidado com o outro
(como o caso de pais, irmãos, amigos), são uma quebra na fruição de suas
conquistas. Por exemplo, o indivíduo recebeu toda a formação dos pais, todo
o empenho pelas suas realizações, todo o carinho doado (claro, com os
limites e defeitos possíveis de todas as relações humanas) e quando ele se
vê numa situação de bem-estar, conquista e euforia, não deseja ver o estorvo
da fragilidade alheia – agora no caso, dos pais – que estarão por sua vez
num momento de carência. Voltar atrás e olhar para os benfeitores, amá-los,
cuidar deles, ter compromissos, é turvar o momento de segurança presente, é
abrir brechas para o afeto fluir, no meio da vaidade das
conquistas.
Assim, podemos concluir que o que atrapalha a gratidão em todos os
casos é o orgulho – de não se admitir que se esteve já em situação difícil –
e o egoísmo – de não querer interromper o gosto da conquista, com a
preocupação, o cuidado e a dedicação ao outro.
Agora, analisemos toda a questão do ponto de vista daquele que ajuda.
Que motivações podem levar a pessoa a fazer um bem a quem esteja em situação
de carência ou precisão? São motivações sempre nobres, puras e elevadas? Até
que ponto podem também estar contaminadas de orgulho e egoísmo? E pode essa
possível contaminação na atitude do benfeitor provocar ou reforçar a
ingratidão?
O ideal de um ato moral – como também aponta o Evangelho e a
interpretação espírita da ética cristã – é o desinteresse. Esse desinteresse
deve ser financeiro, pessoal, afetivo. Ou seja, é preciso fazer o bem, sem
nada querer, esperar ou desejar de volta. A coisa porém não é tão simples.
Primeiro, porque ao fazer o bem, experimenta-se naturalmente um bem-estar
interno (hoje comprovado até através de pesquisas que mostram que dar, doar,
ajudar libera sensações agradáveis para quem faz). Então, ao fazermos o bem,
queremos nos sentir bem? Sem dúvida que sim! E isso eu chamaria – repetindo
uma definição que ouvi do meu terapeuta – de um egoísmo saudável. Afinal,
Jesus disse que deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos. Ou seja, todos
os seres humanos buscam prazer, felicidade, bem-estar e isso é natural. Ora,
muito melhor que esse bem-estar seja provocado por um fazer bem do que por
um fazer mal ou por qualquer tipo de vício autodestrutivo.
Apesar disso, considero que num nível mais elevado de doação, o
indivíduo dá apenas e somente pelo bem do outro, sem pensar na própria
felicidade. É certamente o caso de Jesus, ao morrer na cruz, como
oferecimento de um exemplo para a humanidade.
Mas a questão não fica nesse ponto. Quando nos encontramos diante de
alguém que está em situação de necessidade, os nossos sentimentos de empatia
e compaixão podem ser ativados e nos lançamos a uma ação benéfica para o
outro. Até aí, ótimo. Mas podem surgir também sentimentos (às vezes
inconscientes) de superioridade e de prazer por estarmos numa posição de
generosidade, de vaidade por “sermos tão bons”! Então, o ato de ajuda
carrega algo de humilhante para o outro, sim. Porque podemos nos situar num
patamar de cima, onde o outro que recebe, se sente de fato esmagado pela
nossa oferta. Se a pessoa não tiver alternativa nesse momento, isso poderá
depois gerar uma forte repulsa pelo benfeitor. E tudo isso está muito bem
descrito no Evangelho. O problema é que bons impulsos podem ser manchados
por esses sentimentos negativos – então há de fato um bem praticado, houve
um momento de solidariedade sincera, mas depois o orgulho apareceu para
estragar as coisas.
Outra forma de contaminar o gesto de ajuda está na cobrança de
retorno, que pode ser uma cobrança sutil ou explícita, pode aparecer na
forma de expectativa silenciosa ou de um “jogar na cara” ofensivo. A forma
não explícita gera mal-estar no beneficiário e a explícita provoca justa
revolta. Há inclusive pais e mães que praticam fartamente essa forma
explícita, humilhando filhos, por terem cumprido o que pais e mães devem
fazer – doarem-se inteiramente. Então, o ato do bem ou o amor doado estão
claramente aprisionados nas garras do egoísmo.
Essas manchas no ato de doar não eximem aquele que recebe do
sentimento de gratidão, sobretudo se há um vínculo amoroso envolvido no
processo; assim como a ingratidão não exime o benfeitor de continuar fazendo
o bem; porque é preciso compreender que estamos em processo de aprendizagem
evolutiva e ainda quando queremos praticar o certo e queremos elevar nossos
sentimentos, eles ainda se deixam macular por nossos atavismos milenares. Há
que se ter maturidade e compreensão mútua para entendermos as nossas
fraquezas e as do outro. Há também que se considerar que nossos papéis de
benfeitores e beneficiados se alternam no decorrer da vida. Todos temos
fases, momentos de fragilidade (basta lembrar de como chegamos e como
partimos no mundo). Todos temos oportunidade de ajudar alguém em outros
momentos. Ora somos necessariamente carentes, ora podemos ser generosos.
Refletindo sobre tudo isso, haverá mais oportunidades de superação e de
caminharmos para formas superiores de sentir e fazer.
Há porém algo mais sutil ainda, quando se trata de um benefício e uma
ingratidão entre dois seres que se amam intensamente – e não posso deixar de
imaginar que foi o que Jesus sentiu ao perguntar pelos outros nove leprosos
que não voltaram, que embora não tivessem intimidade com Jesus, o Mestre não
lhes era alheio em seu amor por todas as criaturas. A sua pergunta revela
que ele não ficou indiferente ao fato. É que quando se pratica um bem ou
muitos bens a um ser amado e a pessoa incorpora esse bem em sua vida e
depois rejeita asperamente o irmão, a mãe, o amigo que lhe foi alicerce de
ascensão e realização, o que se pode experimentar é uma profunda dor pelo
outro. Jesus lamenta a ingratidão dos leprosos, como se entristece pela
fraqueza de Judas e de Pedro. Mesmo se o nosso eu estiver já desprendido de
toda mágoa e suscetibilidade – o que requer obviamente um trabalho bastante
cuidadoso – podemos nos entristecer porque o ser amado está agindo de
maneira tão acintosa e ingrata, por ele mesmo. Esse sentimento será
entremeado de compaixão, sem falsa superioridade. Pode-se entretanto ainda
misturar tais impulsos, enquanto estamos a caminho: mágoa com compaixão,
tristeza pelo outro, com esperança de recompensa…
Enfim, tudo isso são aprendizados que nos competem assumir em nossa
jornada evolutiva. E, tinha Kardec razão ao dizer que as duas únicas e
maiores chagas da humanidade são o orgulho e o egoísmo. Estejamos atentos a
isso!
* * *
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